À primeira vista podia ser uma loja e isso talvez seja porque, reflectimos agora, à primeira vista é mesmo uma "loja". E, ainda à primeira vista, é uma loja com aspecto de bazar ou antiquário que parece virada às arábias. Na montra, decorada por "cortinas" que são fios embutidos por peças de cobre de formas saracoteadas, espreita um narguilé tamanho gigante (1,80 metros) que aqui faz as vezes de candeeiro (luzes tingidas pelos vidros coloridos encaixados no cobre) e outros que à vista deste parecem anões e até nem são, pouffs que são como carcaças vazias, Anúbis imperturbável guardião.
Lá dentro, vitrinas acumulam "mercadoria", pulseiras, colares e anéis de prata, copos e adagas marroquinas, cinzeiros e espelhos, marcadores de livros com a efígie de Cleópatra, chaleiras e candeeiros e mais uma miríade de coisas, muitos dourados à mistura e arrebiques inesperados. A tutelar o cenário, um enorme papiro, envelhecido e pintado à mão, cores vivas numa cena de mercado entre edifícios clássicos e figuras arcaicas vendendo tecidos. "É o mercado Khan el Khalili, no Cairo", explica Flora Soares. E o emblemático mercado é o nome deste espaço, que não é, embora ainda pareça, uma loja, mas um bar, que ainda não "apareceu". O conceito é árabe, mas na sua "variante" egípcia, que "não havia em Portugal", diz Flora co-proprietária e gerente, onde o mais comum são os bares marroquinos. Em Março de 2009 abriu, então, a dois passos da Rotunda da Boavista no Porto, o Khan el Khalili, bar egípcio.
Sabemos que o Egipto pode ser escaldante, mas chegamos ao Khan el Khalili com a chuva e o frio de um início de noite de Agosto a caminho de Novembro. Por isso, vamos direitos às traseiras, ver a esplanada que já está a ser desmontada - "Este ano foi horrível, a esplanada praticamente não foi utilizada": os pouffs coloridos já estão amontoados junto às mesas de madeira empilhadas à espera de serem recolhidos, enquanto a chuva cai entre as "frestas" da "tenda" feita de vários panos levíssimos iluminados por candeeiros de vidros pintados.
Voltamos para dentro, portanto, onde o ambiente é, aqui sim, quente como esse Egipto da paixão original - que desembocou aqui, neste espaço de luzes quebradas, sombras e aroma a incenso. Foi a "viver" essa paixão antiga, na sua primeira visita ao Egipto, há oito anos, que Flora conheceu um guia turístico de quem ficou amiga. E a amizade haveria de virar sociedade quando ele "lançou a ideia" de abrir o bar. "O desafio era abrir uma casa diferente", recorda Flora, "não aquela tipicamente árabe, vulgar, com pouffs, mas apostar num conceito um pouco mais elevado".
A inspiração viria dos "melhores hotéis e bares do Cairo" e a divulgação da cultura e o intercâmbio Portugal-Egipto seria um objectivo. "Nunca conseguido até agora", lamenta Flora, explicando que "com a crise é difícil ter preocupações culturais". "Na verdade, ainda não atingimos o ponto que queríamos", pese embora, por exemplo, os espectáculos semanais de dança do ventre que animam o Khan el Khalili.
Não é tipicamente árabe, nem, visto assim, tipicamente egípcio - é uma mistura de ambos como se vê eloquentemente na música: árabe, na maioria das vezes (espreitamos os CD e vemos que as compilações percorrem sobretudo o Magrebe); tradicional egípcia nos interstícios (não mais porque é difícil arranjar música tradicional egípcia aqui). Com uma sofisticação pouco comum neste tipo de bares, o Khan el Khalili é uma espécie de montra para os ambientes mais exclusivos do país dos faraós. De onde veio, aliás, a decoração deste espaço que havia sido o bar Alambique e, antes ainda, uma loja de materiais de construção - uma coincidência curiosa que lhe deu um "chão" marroquino.
Melhor, uma amostra de chão marroquino que por estes dias está enquadrado por uma "tenda", que pode ser vista como a porta de entrada do bar - para além da "loja". Voltamos ao início apenas para explicar a "loja": um espaço expositivo, que inclui, entre outras, peças de ourivesaria de um artesão egípcio (mas não só), onde tudo está à venda. No início, este recanto com vista para a rua tinha mesas e pouffs, mas Flora Soares rapidamente percebeu que ninguém se queria sentar aqui. Daí a rápida adaptação, uma filosofia recorrente no Khan el Khalili, onde o que é verdade hoje, amanhã pode ser outra verdade, tal a dinâmica na reorganização do espaço e na reutilização das peças (os tampos das mesas podem virar "pratos" de parede, por exemplo).
Peças vindas do Egipto, dizíamos. O Egipto dos faraós. Akhenaton e Tutankamon estão por aqui, em máscaras e fotos, a deusa Ísis repete-se neste panteão privado a par de Anúbis, há pequenos sarcófagos decorativos, esfinges, candeeiros de cobre, papiros nas paredes que são vermelho escuro e douradas - cobertas aqui com frisos de madeira ornamentais com o devido revestimento a "ouro" pelas suas formas requebradas.
O mobiliário também se banha em ouro e é quase todo mesas e cadeiras - as primeiras trabalhadas, as segundas de costas largas, quase sofás, com almofadas de listas vermelhas. No "palco", uma área um pouco elevada com acesso ao terraço, sofás intricadamente trabalhados em cada topo sublinham a atmosfera do luxo pelo luxo algo comum na alta sociedade árabe, enquanto um recanto se abre com almofadas e pouffs. Este pode ser visto como uma concessão de Flora Soares num espaço que quis marcar pelo "requinte", para atrair um público mais velho, acima dos 35, 40 anos, como o que se vê aqui sobretudo ao fim-de-semana. "Dentro do conceito árabe, a ideia era proporcionar um espaço para esse público", explica, "com pouffs e banquinhos vinham, experimentavam e até gostavam mas não voltavam". A estratégia parece ter resultado, com "clientes fiéis desde o início da noite". E todas as noites da semana. Uma surpresa, reconhece Flora, que foi "obrigada", aliás, a compor a decoração com mais mesas e cadeiras que inicialmente tinham ficado armazenadas de modo a criar mais espaço de estar - "havia pessoas a carregar pouffs de um lado para o outro".
O primeiro cliente da noite pede uma cerveja, uma opção pouco egípcia. Mas este é um bar adaptado a Portugal, bem entendido, e o álcool circula normalmente - a par de 30 chás (incluindo diversas variedades de preto e menta, os mais comuns), esses sim, tradição profundamente árabe, assim como da shisha (a normal, ou com cerveja, gin, vodka ou whisky - depois aromatizada), outro hábito enraizado. Raízes profundas no Khan el Khalili ganharam, inesperadamente, sublinha Flora Soares, os cocktails. Tanto que não é descabido chamar-lhe uma casa de cocktails - agora também sem álcool. "Desde que abri, os cocktails saem muito", afirma. "Talvez porque as pessoas estão num ambiente diferente e procuram coisas diferentes", aventam. Há os cocktails tradicionais e os outros, aqueles que sabem, pelo menos em nome, a um Egipto místico e misterioso, perfumado de incenso, omnipresente. Khalili Afrodisíaco (o segredo), Sangue de Cleópatra, Desejo de Ísis, Nilo, Luxor, Força de Amon Rá...
Além da dança do ventre
De poucos fundamentalismos se faz este Khan el Khalili - onde até o chá é, já vimos, ofuscado pelos cocktails. A dança do ventre já preencheu as noites de fim-de-semana, agora mantém o seu reduto indivisível ao sábado e à sexta-feira divide o protagonismo com outras noites temáticas. Não há calendário fixo, as noites temáticas acontecem ao ritmo da vontade de Flora Soares. "Gosto de surpreender", assume. Já houve noite latina e Café Paris, a festa da neve "durou" quatro dias durante o Natal, a noite countryteve direito a fardos de palha e a noite Pin Up recebeu "Jessica Rabbit" e marcou a mudança - até Julho, as noites temáticas aconteciam sempre à quinta-feira (mas nem todas as quintas-feiras). "Chega a uma altura em que cansa", constata Flora. Passaram, portanto, para sexta - "Pode não haver espectáculo, mas há sempre decorações, uma bebida nova ou bebidas promocionais". Ao mesmo tempo, a dança do ventre, protagonizada por um núcleo necessariamente restrito de bailarinas ("não há assim tantas aqui"), deixou de ser tão "vulgar". "Os clientes já conheciam, já estavam "fartos" e nem viam o espectáculo", reconhece, "e eu gosto de criar situação de espectáculo".
- Nome
- Khan el Khalili
- Local
- Porto, Ramalde, Rua 5 de Outubro, 231
- Telefone
- 226095729
- Horarios
- Todos os dias das 18:00 às 02:00
- Website
- http://www.khanelkhalili.pt