Fugas - restaurantes e bares

  • João Cordeiro
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Português híbrido, de preço pouco suave

Por Fortunato da Câmara ,

Está num recanto linear de Lisboa, mas tem detalhes que o tornam assimétrico. Este Areeiro 3 pode ser uma boa opção de restaurante numa zona pouco visitada da cidade. Uma boa ajuda seria eliminar algumas incoerências e ficar mais em sintonia com a realidade.

Era difícil a designação ser mais simples e directa, já que não se trata de uma terceira unidade de um qualquer estabelecimento comercial, baptismo que muitas vezes “imaginosamente” por aí se encontra em pastelarias e cafés da cidade. “Areeiro 3” é apenas o nome de um restaurante de morada única que abriu em meados de 2010, obviamente situado na localização homónima. O número 3 da popularmente conhecida Praça do Areeiro fica num dos dois ângulos rectos formados pelos edifícios de planta em “L” desta praça, que entretanto foi rebaptizada com o nome toponímico de Francisco de Sá Carneiro, em homenagem ao primeiro-ministro que faleceu em 1980.

O restaurante é propriedade da empresa Vale da Capucha, que é produtora de vinhos da região Tejo. Ao entrarmos, deparamo-nos com uma sala ampla de tons terra, um balcão em fundo, ao centro, e mobiliário de madeira, prático e confortável. As paredes expõem uma sequência de quadros com fotografias monocromáticas da “antiga” Praça do Areeiro, quando tinha a placa central vazia e uns carros episódicos a circularem ao seu redor. 

A sensação imediata é a de estarmos num ambiente acolhedor, quiçá “seleccionado”, mas com algumas ambivalências no conceito. Os candeeiros de pé com abat-jours clássicos esbarram nas toalhas e guardanapos de papel, na disposição das mesas alinhadas para pequenos grupos, e culmina com um impositivo ecrã de televisão. Tudo isto a média luz, ou quase à luz de velas, com a leitura do menu a estar dificultada aos jantares para quem fica no meio da sala. Um dos factores que mobilizará mais a clientela talvez seja a variação dos buffets que são servidos a cada dia da semana ao almoço. Às terças, feijoada à brasileira, às quartas três receitas de bacalhau que vão mudando semanalmente, e às quintas e sábados cozido à portuguesa. 

Num desses almoços de sábado, a animação entre habitués das avenidas vizinhas punha à prova a acústica ruidosa da sala, ponto de encontro para saborear uma boa conversa e o “cozido à portuguesa” (14,50 euros em buffet). Boas carnes a obedecerem à variedade de cortes habitual nas partes do porco (orelha, pé, etc.), e também canónica nas de novilho. Enchidos escolhidos com critério (destaque para a morcela), o arroz salpicado pela morcela da praxe que lhe está destinada, óptimas couves lombardas, bons nabos, cenouras e batatas, feijão branco tipo “faveta”. Pontos de cozedura em geral aceitáveis, mas com a notória desvantagem de ser em buffet, onde a temperatura de serviço nos réchauds nunca passou do “quentinho”, quando é imperioso tudo estar “bem quente” para se chegar à alma deste prato. 

A casa apresenta-se como um espaço de cozinha tradicional portuguesa requintada, com alguns apontamentos internacionais. A consulta do menu mostra alguma dispersão nesta premissa ao ler-se que há melão com presunto, tábua de queijos DOP da Beira Baixa (nas entradas?), bolinhas de alheira, pimentos “padrón”, tranche de peixe com molho de camarão e couscous, paella “mar e terra”, caril de camarão com arroz basmati, tiborna de bacalhau, bife à Marrare ou coxa de pato confit com molho de laranja. Acrescem a esta lista os pratos do dia, igualmente variáveis. 

A excelência da açorda

Para início veio um cesto de “pão” (2,40 euros) de mistura, de qualidade banal, “azeitonas” (1 euro) carnudas, temperadas com azeite e orégãos, embora numa das vezes estivessem uma pilha de sal, e ainda “manteiga” (0,95 euros) de ervas de qualidade média.

A primeira entrada foram “cascas de batata fritas com molho picante” (3,50 euros), umas lascas grossinhas daquelas que um aprendiz tira à batata nos primeiros dias em que as descasa, mas que lá traziam um pouco de pele agarrada. Tinham boa qualidade e fritura, com o molho ligeiramente picante a servir para espevitar mais a gula.

A “salada de polvo da rocha” (7,75 euros) inicialmente não deslumbrou por ser servida muito gelada, mas o facto é que trazia uns pedacinhos tenros e saborosos de bom polvo, que até conseguiu sobressair na mistura com uma cebola agressiva que ia deitando a perder o acerto do tempero e a qualidade da matéria-prima.

Os “mexilhões com pimentos vidrados” (7,25 euros), versão meia concha (congelados) de calibre médio curto, mas de miolo gordinho, felizmente foram cozinhados à parte para assim conseguirem deixar passar o seu sabor, após serem envolvidos nos pimentos. Estes eram de boa qualidade e foram “domesticados” para não agredirem os bivalves ao serem cortados em tiras finas carnudas e ao receberem um tempero adocicado. Apresentada em quatro rodelas vistosas, a “morcela de arroz com grelos” (6,50 euros) era muito boa, com um subtil gosto picante e muito bem acompanhada por grelos migados com um suave golpe de vinagre, a avivar mais o contraste com o enchido.

No peixe, a escolha foi de época no “sável com açorda de ovas” (17 euros), com as habituais postas cortadas fininhas, agradáveis, fritas e enxutas, mas que ficaram quase em segundo plano perante a excelente açorda — o sabor intenso a peixe do caldo e das ovas e a consistência gulosa e possante dada por miolo de broa de milho. Com este nível, sozinha, valia um prato. A “raia alhada à algarvia” (10,80 euros) estava mais parecida com um “cação de coentrada” à alentejana que outra coisa. A erva aromática dominou tudo e todos. Os alhos passaram a actores secundários, as batatinhas novas perdidas no meio do caldo, e o peixe na sua composição esponjosa a cozinhar de mais e a deixar-se embriagar no tempero, ficando sem brilho. 

No “carré de borrego com puré de batata-doce” (16,70 euros) era notória a qualidade da carne, com a meia dúzia de costeletinhas a virem em ponto rosado e sumarento a ornamentarem um belíssimo puré de batata-doce, denso e viciante com textura de seda. Uma redundância foi a vinda de chips de batata-doce, mas pior é ser omissa na carta a inclusão de um despropositado doce de frutos vermelhos que ia muito além daqueles arabescos decorativos sem sentido que por vezes se vêem. O acessório indesejável não só contaminava a carne e o puré com o sabor “compotado” dos frutos vermelhos, como somava mais açúcar a um prato que já o tinha quanto bastasse.

Para um restaurante que assume ser amigo do vinho, a carta é bem mais curta do que se podia imaginar. Cada proposta da lista traz o nome das castas e do produtor, o que é uma informação útil, embora esteja algo confusa ao apresentar vinhos que não existem, mas vendo-se nos expositores que há muito mais referências que as listadas. A variedade é portanto escassa, com preços dentro da especulação habitual, à excepção da região Tejo, onde o proprietário está omnipresente na oferta com o seu catálogo e a preços de combate (claro!) para que o “bom entendedor” tenha a escolha “facilitada”. Serviço simpático e esclarecido por parte do gerente, com o registo da restante equipa de sala a situar-se entre o muito afável por parte de uma jovem portuguesa e um estilo mais compenetrado e rígido vindo de uma jovem brasileira. O assunto começa a ser recorrente, mas é de evitar “oferecer” água do cano filtrada (2,5 euros/litro) para a cobrarem a preços de água mineral engarrafada! 

Nas sobremesas o “bolo mousse de chocolate com gelado de tangerina confit” (4,60 euros) era uma fatia triangular alta de um bolo muito macio que se derretia no vértice, servido tépido, o que ganhou outro interesse pelo contraste com o excelente gelado de tangerina, guarnecido com pedacinhos “confitados”. Na “mousse de requeijão com doce de abóbora” (3,85 euros) não se percebeu qual era a ideia final. Requeijão de fraca qualidade, misturado com um pouco de natas, mas sem ter a textura de mousse, foi “emoldurado” de novo num aro redondo para recuperar a forma, e vinha cravejado de bolachas de água e sal (?). No topo, uma compota líquida muito doce, a parecer geleia, onde quase não se sentia o sabor da abóbora. Bem escolhido pela casa é ter o “pastel de feijão de Torres Vedras” (1,20 euros) da Fábrica Coroa, com o seu recheio húmido e moderadamente doce. 

Esta praça do Areeiro foi planificada a régua e esquadro, ao ponto de em vista aérea os edifícios de Cristino Silva no estilo “Português Suave” formarem o escudo de um brasão. Poderá a geometria da arquitectura servir de inspiração para corrigir algumas assimetrias deste Areeiro 3? É que por aqui pode-se fazer uma agradável refeição, mas não se está livre de apanhar uma desilusão. O menu é híbrido para ser assumido como marcadamente português e os preços podem ser pouco suaves para alguns clientes que gostassem de voltar. 

Nome
Areeiro 3
Local
Lisboa, Sé, Praça Francisco Sá Carneiro, 3A/B
Telefone
218002381
Horarios
Segunda a Sábado das 12:00 às 15:30 e das 19:00 às 23:00
e Segunda-feira das 19:00 às 23:00
Website
http://www.valedacapucha.com/
Preço
30€
Cozinha
Mediterrânica
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