Em Maio o restaurante Entra completa dois anos. Os proprietários são Luís Magalhães e Pedro Marques, que denotam coragem e vontade de oferecer um estilo de cozinha actual, com técnica, sabores portugueses, produtos frescos de qualidade, mas a preços acessíveis, para alcançar um público mais abrangente.
Esta descrição poderia ser a sinopse de apresentação de uns quantos restaurantes que abriram na capital durante os últimos anos. Alguns cumprem-se nos seus desígnios, outros nem por isso, mas lá seguem na errância do caminho exigente e coercivo de resultados, característico do tipo de negócio em que decidiram apostar. No caso do Entra, ambos os proprietários são cozinheiros, mas é a Luís quem cabe a responsabilidade de cozinhar, enquanto Pedro coordena as operações na sala. A parte corajosa do projecto é a localização escolhida pelos jovens empresários.
O Entra está a caminho do Parque dos Nações para quem vai de Santa Apolónia, uma zona da cidade que ficou numa espécie de limbo desde a Expo 98. O nome tinha mesmo que ser diferente e com um toque apelativo, pois o restaurante está perdido no meio do nada, algures na Rua do Açúcar, que em tempos teve uma fábrica da doce substância, mas que a amargura da decadência veio transformar numa artéria de topónimo bizarro. Durante o dia, parece quase dissimulado no rés-do-chão de um prédio incaracterístico, sendo preciso esperar pelo cair da noite para que fique mais visível, graças às luzes exteriores que o destacam da vizinhança devoluta. Em contrapartida, há estacionamento amplo e fácil para a clientela jovem que aos fins-de-semana preenche com frequência os 60 lugares de lotação. Isto de ficar no meio do nada por vezes tem a vantagem de ficar a meio caminho de tudo, o que é o caso.
Aos almoços há duas ou três opções diárias (8,50 euros). Algumas podem ser extraídas da lista fixa, como era o caso de um dia em que se provou o denominado “Fizemos-lhe a cama”, a saber: um folhado, dourado e devidamente estaladiço (é que por vezes há folhados falhados!), recheado de pato estufado com alho-francês, de textura húmida e sabores equilibrados. Em regime diurno também surgiu um agradável “Bacalhau à Brás”, com todos os preceitos, e sem reparos na textura e proporções dos ingredientes.
A ementa é curta, com seis entradas, quatro sugestões de peixe, e três de carne. Apesar de ser anunciada a mudança a cada três meses, a oferta não deixa de ser redutora. Isto embora seja preferível ter poucas opções com boa qualidade de execução, já para não falar que está mais assegurada a frescura dos produtos, devido à rotação ser maior.
O humor parece ter sido a solução escolhida para contrastar com o ambiente soturno das redondezas do Entra. Os pratos são descritos em textos longos, porém elucidativos, e com tiradas irónicas, como a que se transcreve: “A menina quer? Não dava mesmo para evitar fazer esta graçola. Porque se os reis tinham cognome, a alheira, em bom português, tem co-graçola. Ainda mais quando é mexida e remexida com ovos mal passados, no ponto certo para não destoar. A menina, gente fina e bem-educada, também não resiste a provar esta entrada (a rima é para disfarçar o brejeiro).” As piadas e os trocadilhos, misturados com os comentários do momento, animam a mesa e baralham as decisões, mas não fomos pela alheira. Entretidos por um couvert (1 euro/pax) de bom pão rústico e uma trivial pasta de azeitonas, das oxidadas, seguimos por outras opções entrantes igualmente lúdicas.
“Diz-que-andam-enrolados” (5 euros) era um conjunto apaladado, formado por uma tira de presunto e outra de beringela, a enrolarem uma porção de queijo fresco, com o sabor do legume a entrar em ocaso, “entalado” entre o bom tempero do recheio e a presença do sal da carne, acentuada após os rolinhos terem sido salteados. Os “Cala Mários” (5,50 euros) também a mim me deixaram mudo, com os anunciados anéis de lulas fritos “de comer e chorar por mais” a serem dos congelados! Opção incoerente e despropositada para as expectativas. À mesa chegou também uma dose generosa de “Kátia Vanessa” (6 euros), combinação entre linguiça e um misto de cogumelos (portobello, pleurotos, e “de Paris”), que, correndo o risco de os fungos serem permeáveis ao sabor do enchido, resultou muito bem na preservação das texturas e dos aromas de cada componente.
Nos pratos principais, pescou-se um delicioso “Cururuca-que-corou” (13,50 euros), que era um arroz malandrinho feito com caldo de peixe e que servia de base a uma garbosa posta de corvina, num ponto de cocção perfeito; húmida, fresca e com a pele crocante impecavelmente escamada. “Oh chefe!” (13,50 euros) é a interjeição que serve de palavra-passe para a gulosa açorda de gambas, preparada com um genuíno caldo de marisco e generosamente guarnecida com camarões salteados em vez de cozidos, ficando mais firmes e saborosos. Nas carnes, o “Consolo no cachaço” (12,80 euros) eram vistosos e tenros nacos de porco estufado, acompanhados de puré de batata e espargos, num conjunto reconfortante e apetecível.
Sem salamaleques
A carta de vinhos segue a mesma escassez de propostas que a de comidas, sendo apresentada numa garrafa, como se fosse um rótulo, mas que não foge às opções a copo nem aos preços igualmente comedidos. O serviço é eficaz e cumpre os requisitos básicos, mas oscila entre a simpatia descontraída da vertente feminina e por vezes um excesso de informalidade do lado masculino. Olhando para a decoração da sala, com paredes revestidas a mármore até meia altura e as mesas despojadas de grandes apetrechos, percebe-se que a ideia é ter um ambiente familiar e sem grandes salamaleques, mas convivial. Talvez com a mesma descontracção do passado, quando ali existia uma taberna. Atrevo-me a também recorrer a uma tirada irónica para lembrar que, no trato com os clientes, “à-vontade não é à-vontadinha”, um vocábulo de cariz militar que fica como sugestão de futuro para que não se confundam os papéis de cada parte.
Falando em papéis, mas de relevo, merecem destaque algumas das sete sobremesas (4 euros/cada), que são comuns aos dois serviços (almoços e jantares). Atendendo à generosidade das doses, é importante reservar lugar para “O padrinho”, um “quarteirão” de tiramisu de toque alcoólico anisado e confecção perfeita, pronto a “levantar o ânimo” (tira me sù). Igualmente recomendável é a trouxa de massa filo a embrulhar um puré de figos e passas, que trazia uma bola de gelado de caramelo, baptizado como “Chamava-lhe um figuinho”. Bom exemplo de apresentação moderna de uma sobremesa tradicional, sem mexer nos ingredientes, é a delicada mousse de requeijão com doce de abóbora caseiro. No momento de a pedir, apetece mesmo dizer convictamente: “Põe-te aqui à minha beira”.
É um prazer ver chefs de cozinha jovens, ambiciosos e com vontade intrínseca (e inerente) de mostrarem qualidades. Com mais ou menos exposição na imprensa, lá vão desafiando a lógica, tentando praticar uma cozinha luminosa que os sinalize no meio da treva financeira em que vivem muitos dos potenciais consumidores. Esta saudável vertente empreendedora da nova geração de cozinheiros é um bom indicador para a evolução da restauração. A ousadia de abrir um restaurante numa zona comercialmente morta é um esforço meritório que merece ser estimulado. É um lugar onde se vai pelo ambiente animado e a qualidade da ementa. Quem experimenta este Entra gosta, e não se atormenta por saber que do lado de fora há um espaço vazio onde Lisboa é mais cinzenta.
- Nome
- Entra Restaurante
- Local
- Lisboa, Lisboa, Rua do Açucar, 80
- Telefone
- 212417014
- Horarios
- Segunda das 12:00 às 15:00
Terça a Sexta das 12:00 às 15:00 e das 19:30 às 23:00
Sábado das 19:30 às 23:00
- Website
- http://www.entra.pt
- Preço
- 23€
- Cozinha
- Trad. Portuguesa
- Espaço para fumadores
- Não