Um edifício centenário que começou por ser uma fábrica de sedas, depois uma escola primária e por fim um atelier de decoração de interiores teve o seu mais recente capítulo escrito em 2011 quando surgiu o restaurante Rota das Sedas. A beleza e luminosidade das instalações e uma carta a piscar o olho aos que procuravam uma cozinha personalizada colocaram a nova morada no mapa das boas ofertas da cidade, e logo numa parte algo despovoada da Rua da Escola Politécnica, de concorrência pouco cativante nas redondezas (sobretudo à época). O chamariz de arranque foi o brunch dos domingos, que na realidade sempre fora um bufete bastante mais completo (e ainda bem) que um “pequeno-almoço almoçarado”, expressão na génese do termo inglês. O sucesso foi merecido, pois a execução é de qualidade e ainda hoje se mantém, agora aos almoços de sábado e domingo. O serviço à carta nos restantes dias é que parece não ter tido a mesma relevância que o brunch (bufete).
Como um restaurante não pode viver só de um brunch semanal, tinha de haver um punch original (a rima faz sentido). Por isso, em Outubro passado o espaço mudou a designação para Lisboa na Rota das Sedas e apresentou uma nova carta inspirada na cozinha da região de Lisboa sob a consultoria do cozinheiro Nuno Diniz que, além de chefiar a cozinha da York House, é professor de hotelaria. Ambas as escolhas parecem-me inteligentes e acertadas. Primeiro ter Lisboa como mote é a oportunidade de resgatar de memórias passadas, embora não longínquas (aos olhos da excitação desenfreada dos chamados foodies é que tudo parece velho em poucos meses), pratos de tradição e sabor presentes que caíram num incompreensível desuso acelerado. Depois há a escolha do chef Nuno Diniz, um valor acrescentado pela imagem pública de rigor e respeito por receitas e produtos que o caracterizam. O resultado é uma lista de pratos conhecidos, com outros menos óbvios e sazonais, que mostram a diversidade (para alguns inesperada) da cozinha regional de Lisboa, a juntar uma ou outra incursão extramuros.
A época do ano determina a oferta de alguns pratos. Nas sopas, pode encontrar-se uma canja de galinha, um gaspacho ou uma sopa de peixe à lisboeta. As entradas trazem carapaus de escabeche, fava-rica com morcela de arroz (quando houver), fígados de galinha com cebolinha caramelizada ou ovos verdes. Os peixes apresentam uma invulgar (mas típica) feijoada de “sames” (bexiga de bacalhau), as populares pataniscas de bacalhau com arroz de coentros, o polvo à Cascais — com a antecedência de 24 horas de reserva os aficionados podem deleitar-se com uma cabeça de garoupa e legumes da estação. Nas carnes, a viagem pode iniciar-se no século XIX com os “românticos” bifes à Marrare ou à Faustino, depois o bitoque lisboeta ou a perna de borrego com batata e espargos. Até há pouco tempo havia por encomenda “lebre à Bulhão Pato” (receita da autoria do próprio, ao contrário das amêijoas), mas a fraca procura fê-la sair da carta, gorando-se a hipótese de experimentar a lebrezinha nascida na imaginação do escritor que é marinada em vinho e ervas e grelhada lentamente envolta em tiras de toucinho.
Veio o “couvert” (2 euros) composto por manteiga batida com alho em pó e tomilho, com pão e azeitonas de qualidade regular. O começo foi pela “sopa parva” (4,50 euros), a fazer lembrar um híbrido entre um minestrone e um consommé. Vários ingredientes picados em cubinhos onde se encontravam curgete, chouriço, pêra, aipo de bola, rodelas de azeitonas ou castanhas, que vinham num caldo de frango clarificado até à transparência temperado com um piso de azeite e manjericão. Mesmo sem ter conseguido associá-la a Lisboa, o resultado foi reconfortante, com sabores definidos dos vários elementos a contribuírem para o equilíbrio do todo. Dos petiscos provaram-se os “peixinhos da horta” (3,50 euros), que eram cerca de uma dúzia de feijões verdes tenros e bem envolvidos num polme crocante, na linha de uma tempura, que trazia uma boa maionese de alho a acompanhar; no entanto, os “peixinhos” eram bons per si. Excelentes eram os “pastéis massa tenra” (3,50 euros), duas unidades de tamanho médio, massa estaladiça impecável, que se apresentou “sequinha” sem ceder à boa execução da fritura. O recheio húmido a sentirem-se os filamentos do novilho vinha centrado na massa, a fazer lembrar uns raviolis em ponto grande.
Nos principais escolheu-se o tradicional e prestigiado “bacalhau à Brás” (12 euros), com a simbiose perfeita entre a cebola não muito puxada, boa batata frita (aparentava ser caseira) e a mistura sedosa dos ovos muito agradável sem estar seca ou muito mexida para não deixar desfazer as lascas. Irrepreensível. Da sugestão “peixe do dia” vieram os “filetes de garoupa com arroz de grelos” (16,50 euros). Sobre uma pedra de xisto coberta com finas rodelas de limão vinha meia dúzia de tiras de peixe muito bem frito, num polme de “roupagem” compacta que se soltava com leveza, mostrando os minifiletes a lascar no interior. Ao lado um microtachinho de ferro (onde mal caberia uma batata de tamanho médio) com um saboroso arroz de grelos (de nabo) com a nota azeda ideal para contrastar com a fritura do peixe. O equilíbrio entre a porção servida e o preço é que não merece apreço. Nas “iscas com elas” (10,50 euros) a dose foi mais generosa, com seis isquinhas bem temperadas, ligeiramente rosadas no interior, em vez de secas, onde se sentia o vinagre, que apesar de não dominar o prato deixava o sabor da carne mais discreto. Bom acompanhamento de batata cozida cortada em rodelas grossa e corada na frigideira.
Redescobrir antes de inovar
Do painel doceiro os eleitos foram o ? ?pudim da Teresa” (4,50 euros), um flan individual de consistência enqueijada, onde além do caramelo vinham amêndoas torradas e uvas para trazer alguma frescura e contraste ao conjunto. Agradável mas não marcante. O “doce de vinagre” (4,50 euros) tinha boas hipóteses de deixar essa memória, mas falhou por completo. A receita do Montijo (também há uma versão semelhante na Ilha Terceira) trazia as notas “anisadas” da infusão da erva-doce no creme de leite e ovos “talhado” com vinagre, só que vinha tudo líquido e sem graça. O suposto ponto “espadana” da mistura desapareceu e não ajudou ter um granizado de manjericão em cima; o anunciado crumble de laranja foi outra miragem. Valeu tudo pelo “leite-creme com farófias” (4 euros), onde o molho de veludo espectacular podia estar ali sozinho sem a “sombra” das farófias.
Carta de vinhos não muito extensa, com preços dentro do habitual, e um ou dois itens abaixo da tabela para permitir o controlo de custos. Há ainda uma dúzia de sugestões a copo entre os 2,5 euros e os 5 euros, divididas entre brancos e tintos de diferentes gamas. Serviço simpático e atento, com pouca rodagem nas informações da carta mas sempre disponível para ir à cozinha esclarecer dúvidas acerca dos pratos. Nos dias de semana pode haver alguma demora acima do habitual, indiciando não ser um restaurante muito virado para as refeições de pausa no trabalho, mas com um cuidado mais demorado na confecção propício a almoços de negócios. A chamada “engenharia do menu” também o demonstra, com a desproporcionalidade de preços entre alguns pratos e o facto de na mudança de carta alguns pratos terem tido aumentos tolos, como a “sopa parva”, que passou de 3,50 euros para 4,50 euros, ou os “pastéis de massa tenra”, que de 3 euros foram para 3,50 euros. Os hits são caros, porque as iscas não chamam foodies. O mais relevante neste “Lisboa na Rota das Sedas” é ser um local aprazível, onde a esplanada e o jardim pedem todo o tempo do mundo, que aposta num rumo inovador com base em memórias do passado, que talvez sejam o futuro. O percurso discreto, mas concreto, de Nuno Diniz merece o incentivo de se descobrir a sua cozinha sobretudo pelo excelente trabalho que tem desenvolvido com a turma de Culinary Arts na bem organizada Escola de Hotelaria de Lisboa — não me esqueci de um belíssimo “fricassé de pato com canela” de Ribeira de Pena que provei num almoço de Abril no restaurante de aplicação. Como se vê, há coisas para redescobrir cá dentro antes de se pensar que “inovar” é apenas repetir as técnicas e os ingredientes que estão a dar no momento.
- Nome
- Lisboa na Rota das Sedas
- Local
- Lisboa, São Mamede, Rua da Escola Politécnica, 231
- Telefone
- 213874472
- Horarios
- Terça a Domingo das 12:30 às 15:30 e das 20:00 às 23:30
Sexta-feira e Sábado das 12:30 às 15:00 e das 20:00 às 00:00
e Domingo das 12:30 às 15:00
- Website
- http://www.rotadassedas.com/
- Preço
- 30€
- Cozinha
- Autor
- Espaço para fumadores
- Sim