As luzes desligam-se. A sala fica iluminada apenas por dois candeeiros escondidos em recantos. As pessoas, que antes conversavam animadamente, vão-se calando. Sentadas em cadeiras de madeira de feitios vários, esperam pacientemente. Numa das mesas, um homem alto e magro organiza livros e papéis, dispondo-os de uma forma ordeira. Coloca-os em cima da mesa, abre um dos livros e levanta-se. Por fim, o silêncio faz-se sentir e todos os olhos da sala concentram nele a sua atenção.
A dor, forte e imprevista, / Ferindo-me, imprevista, / De branca e de imprevista / Foi um deslumbramento, / Que me endoidou a vista, / Fez-me perder a vista, / Fez-me fugir a vista, /
Num doce esvaimento. // Como um deserto imenso, / Branco deserto imenso, / Resplandecente e imenso, / Fez-se em redor de mim / (...)
Faz-se ouvir Camilo Pessanha e quem o diz é Samuel Pimenta, anfitrião das noites de tertúlia literária no pequeno Zazou Café, em pleno território do fado. Mas, nestas quintas-feiras, a cada 15 dias, não se canta a poesia. A partilha, aqui, faz-se através da leitura de poemas de diferentes autores, sendo que toda a gente é convidada a trazer as suas próprias obras.
“Este é um espaço de partilha entre as pessoas que vêm escutar e as pessoas que vêm ler os seus textos”, explica Samuel Pimenta. Em todas as sessões, pode haver um ou mais convidados que trazem “a sua escrita, os seus poemas”. E “todos os que estão presentes têm a liberdade de poder partilhar os seus textos ou de outros”, resume.
Jovem escritor, com apenas 22 anos, Samuel já viu o seu trabalho ser recompensado com o prémio Jovens Criadores em 2012. Foi então que decidiu que queria continuar a investir na poesia. Quando descobriu o Zazou achou que seria o espaço ideal para pôr em prática uma ideia há muito pensada. Abordou a proprietária e esta acolheu com agrado o plano. “Fez-nos a proposta e nós achámos que era a pessoa certa para fazer as tertúlias. Nós já tínhamos essa vontade e ele também. Juntámos o útil ao agradável”, conta Mónica Gonçalves, dona do espaço.
Mónica abriu o café em Outubro de 2011, depois de deixar o seu trabalho num banco. Desejava criar um projecto que fosse exclusivamente português e, depois de encontrar o espaço em Alfama, abriu o Zazou, uma loja de produtos tradicionais. “Eu não sou de Lisboa, sou da Beira Baixa e sentia falta dessa genuinidade dos produtos que já não encontramos nos supermercados”, conta a proprietária. O espaço tornou-se, então, numa mercearia de produtos portugueses que enchem as prateleiras, desde os queijos ao azeite, passando pelos doces e pelas bebidas alcoólicas. Para além disso, há artesanato que encomenda a pequenos produtores e ainda um café que dá a oportunidade ao cliente de comprovar a qualidade daquilo que está exposto para venda.
No entanto, Mónica sentia a necessidade de acrescentar ao projecto uma vertente cultural relacionada com a cultura portuguesa. Para além de teatro ou sessões de contos tradicionais, decidiu acolher as tertúlias literárias de Samuel. Foi então que, de 15 em 15 dias, se começou a realizar, no Zazou, uma noite inteiramente dedicada à poesia.
Como esta, em que, depois de alguns poemas lidos por Samuel, chega a vez de a autora convidada ser chamada a ler alguma da sua obra. De óculos pretos de massa e cabelos curtos, Maria João Cantinho levanta-se e começa por apresentar-se. De seguida olha para Samuel e pergunta-lhe se deve, então, ler um dos seus textos. Depois de alguns segundos de espera, segura num dos livros e lê “A Dança Primordial”. Entretanto, começam a chegar às mesas alguns copos de vinho e pequenas tábuas de queijos e presunto, prontamente saboreadas pelos convivas enquanto escutam atentamente as palavras ditas.
“A poesia é uma actividade para ser lida. E só faz sentido quando vemos o olhar de quem nos ouve, a reacção que desperta. Quando as sessões são muito formais perde-se um pouco esse impacto. E a sessão de poesia mais intimista, que é o caso, é muito mais gratificante. O ambiente é muito acolhedor. E tem uma coisa boa, que normalmente não existe noutros cafés, é que não é nada ruidoso”, afirma Maria João Cantinho.
De facto, neste pequeno café em Alfama, o silêncio impera para deixar que as palavras de uma só pessoa, o leitor, encham o espaço. Entre as leituras, apenas o refrigerar de uma arca frigorífica se faz ouvir. Nesta noite, estão cerca de 20 pessoas a prestar atenção à poesia. Para Sérgio Batista, um dos clientes, é uma escolha que não significa um esforço, mas sim uma vontade: “Eu não deixo de ir a concertos”, diz, “mas isto não custa nada. Sempre que saio daqui, vou para casa mais rico”.
No entanto, a leitura não é a única actividade desta noite. A discussão em torno dos temas que vão rodeando os poemas é comum, ou não se tratasse esta de uma tertúlia. Desta vez, a controvérsia inicia-se quando Samuel lê um dos textos que publicou no seu blogue, “Poema-imagem”. Depois de lido o texto, a discussão está lançada. O facto de alguns poemas serem despropositadamente acompanhados por imagens suscita as mais diversas opiniões entre os presentes.
A discussão continua durante largos minutos. O ambiente, até aí bastante calmo e silencioso, transforma-se. Praticamente todos dão a sua opinião, numa troca de palavras que parece não ter fim. Uns mais efusivos que outros, apresentam os seus argumentos, dando às pessoas um à-vontade que, até então, não tinha existido.
“O que impera nas tertúlias é realmente a partilha, e não tanto o interpretar. Não pretendo um espaço muito formal e académico em que tenhamos que interpretar à letra o que está a ser lido ou dito. O que interessa é que as pessoas venham cá, participem, opinem e partilhem aquilo que pensam, aquilo que sentem, face às palavras que são escutadas”, explica Samuel.
E foi o que aconteceu. Mas a conversa acabou por se esgotar, ouvindo-se apenas alguns sussurros dos que ainda pensavam e reflectiam sobre o assunto. Uma mulher sentada num sofá ao canto da sala levantou-se e dirigiu-se em direcção ao centro do espaço. “Faço parte daquelas pessoas que não lêem”, disse. “O meu passatempo é o zapping. Quando leio livros, dá-me uma dor de cabeça e só penso em dormir. Podia-se fazer uma tertúlia sobre isso”, brinca.
A mulher é Ana Esteves, de 36 anos, que, apesar do seu desinteresse pelos livros, já assistiu a várias tertúlias. “Gosto muito do espaço. Sinto-me muito bem. É um espaço acolhedor e faz-me bem vir cá. Saio daqui com vontade de ler mais”.
Sem jeito, segura uma folha de papel e lê, algo apressadamente, “O Mar”, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Depois de alguns aplausos afirma que não gosta muito de ler em voz alta e que não está habituada. “Se há pessoas que tenho que agradecer por voltar a ler é a ti e à Mónica”, diz apontando para Samuel que, sentado numa cadeira, a olha com um sorriso.
“As pessoas que não lêem poesia é mais fácil ouvirem e, depois de saírem daqui, lerem, porque saíram com o ouvido sensibilizado”, afirma Maria João Cantinho. “É sempre gratificante uma leitura de poemas, porque isso pode levar a que seja desenvolvido o hábito da leitura de poesia, que é um hábito que não existe.”
O desuso da poesia é, aliás, outro dos temas que acaba, mais tarde, por tomar conta da tertúlia. “O futuro da poesia pode estar na Internet”, ouve-se alguém dizer. Numa sala, onde já são poucos os que permanecem, este parece que o tema que os motiva a continuar a conversa. “Antigamente um autor, ou era editado, ou então não era lido”, relembra Maria João, para quem os novos meios de comunicação podem ser uma oportunidade para os poetas divulgarem o seu trabalho.
Quanto a este espaço de partilha e divulgação da poesia, o sentimento é comum. “Não há espaços assim. Só se lê poesia em apresentações de livros, em que o autor pega no livro para levar à sua compra e não para iniciar uma discussão”, afirma Sérgio que se mantém no mesmo lugar, atento ao que, por ali, se vai dizendo.
“Os encontros literários em Lisboa estão ainda muito ligados às livrarias. Havia falta de um espaço isento, onde as pessoas pudessem estar pura e simplesmente pelas palavras, sem terem que adquirir um livro”, afirma Samuel.
A noite já vai longa no Zazou. Passaram-se cerca de três horas desde o início da tertúlia e os rostos já aparentam cansaço. Samuel levanta-se, então, pela última vez e encerra a tertúlia com um poema de Florbela Espanca, “Escreve-me”. No fim, fica a promessa de voltar novamente com novos convidados e novos temas. As pessoas aplaudem levemente e dirigem-se para a saída, ficando por ali a conversar. “E foi mais uma tertúlia. Daqui a quinze dias há mais”, ouve-se dizer, num misto entre o sono e a satisfação.
- Nome
- Zazou - Bazar e Café
- Local
- Lisboa, Madalena, Calçada do Correio Velho, 7
- Telefone
- 218884277
- Horarios
- Domingo, Terça-feira, Quarta-feira e Quinta-feira das 12:00 às 22:00
Sexta-feira e Sábado das 12:00
- Website
- http://www.facebook.com/zazoubazarecafe