Fugas - restaurantes e bares

  • José Sarmento Matos
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O que é que um primo jesuíta tem a ver com umas empadas de galinha divinas?

Por Alexandra Prado Coelho ,

Durante décadas, os fiéis dos petiscos alentejanos de Manuel Martins rumavam a Campo de Ourique, ao restaurante nascido na antiga mercearia do pai. Este encerrou, mas as especialidades não desapareceram de Lisboa. Manuel Martins acaba de abrir outro espaço: a Charcutaria Lisboa.

Um primo jesuíta, uma mercearia em Campo de Ourique que recebia os melhores produtos, uma juventude dourada em Évora - disto (e de muito mais) se fez a formação de Manuel Martins. O que comemos hoje na Charcutaria Lisboa, na Rua do Alecrim, é o resultado dessa experiência de vida. Por isso, é um privilégio provar as empadas de galinha ou as migas de batata e ovo ou a sopa de cação enquanto ouvimos Manuel Martins contar a sua história.

E ele começa precisamente pelo primo jesuíta. "Ele tinha aquele feito dos jesuítas, faz-se e depois diz-se que se vai fazer, a teoria do facto consumado. E a disciplina. Foi ele quem me disciplinou nos estudos. E quem convenceu o meu pai a mandar-me para o Instituto de Estudos Superiores de Évora, que era dos jesuítas", conta.

Évora foi a descoberta de um novo mundo. "O meu pai era uma pessoa humilde mas dava-me todos os meses uma quantidade de dinheiro suficiente para eu ter uma vida faustosa em Évora. Tive a oportunidade de entrar nas melhores casas e isso deu-me um contacto muito directo com a comida alentejana, na casa das pessoas e fora, no petisco." Até porque nessa altura "havia petisco em Évora como não há hoje".

Diz que foi aí que lhe nasceu o gosto pela comida. Mas provavelmente foi uns bons anos antes, quando andava pela mercearia do pai e ia provando os queijos, os enchidos e tudo o resto que ia chegando. "Fui das primeiras pessoas em Portugal a comer um iorgurte, pelo menos entre aquelas que nunca tinham ido ao estrangeiro." Recorda-se bem desse momento - e não é das melhores recordações. "Ainda hoje tenho memória daquele sabor. Abominei. Já viu o que é um iogurte em 1953, 54, à temperatura ambiente, ali a um canto da mercearia? Era o iorgurte Ocidental que vinha numas tacinhas tipo barricas dos ovos moles de Aveiro."

Enquanto conversamos, vão chegando à mesa torradas e as empadas de galinha, famosas na casa. Manuel continua: "Em Évora encontro esse ambiente de petiscos do outro mundo. Tive sorte, porque vinha disciplinado pelo meu primo jesuíta, senão perdia-me. Mas a disciplina era de tal ordem que eu petiscava e estudava."

Foi em Évora que conheceu a futura mulher, "de uma família tradicional alentejana, onde se cultivava o prazer da comida, sem faustos". Juntos eram "a combinação perfeita". Ao princípio Manuel não cozinhava, mas a pouco e pouco foi aprendendo. "Aí, sim, comecei a ver as combinações e a simplicidade das coisas, e isso levou-me a pensar em ter um restaurante." Faziam muitas experiências. "Íamos experimentando até atingirmos aquilo que é hoje considerado a perfeição, que são estas empadas. Ou os pezinhos de coentrada, que dizem que são os melhores de Portugal."

Nessa altura, Manuel trabalhava ainda como bancário. Entretanto, o pai introduziu alterações na mercearia, que, depois de umas obras de melhoramento (que não agradaram particularmente ao filho), começou a ser chamada pelos clientes de "charcutaria". Foi nessa casa que Manuel pegou, depois da morte do pai. E, como acontece às vezes na sua vida, foi uma decisão repentina.

"Um dia cheguei ao banco e à hora do almoço e disse "meus senhores, amanhã já não venho trabalhar". Acharam que eu estava maluco, mas no dia seguinte peguei ao trabalho às 9h, só que em vez de ir para o banco fui para a mercearia, abri e porta e comecei a vender." Não tinha sido capaz de se desfazer da charcutaria e percebera que tinha que se dedicar a ela de alma e coração.

Um dia decidiu que ia vender comida na Charcutaria (falamos ainda da original, em Campo de Ourique, na antiga mercearia do pai), uma casa que, com grande tristeza, acaba de vender para se dedicar mais a esta onde estamos, na Rua do Alecrim. "Custou-me muito, já viu o que são 66 anos a entrar naquele sítio? Não choro com essas coisas, se não teria chorado. Era um sítio muito pequeno, com poucos lugares, e numa altura destas de crise isso é terrível, por isso fechei." Fora aí que, em 1990, no mês de Agosto, começara a vender comida - o primeiro prato foi bacalhau com coentros e, numa Lisboa em que tudo o resto fechava durante o mês de férias, o sucesso chegou rapidamente. "Começo a fazer cada vez mais pratos, sopas alentejanas, coisas que mais ninguém tinha em Lisboa, como a rexina, que é um prato da matança."

Interrompe as memórias um instante. "Quer provar a sopa de tomate? Vamos fazer uma coisa, prova agora, e volta cá quando for a época do tomate bom para ver a diferença", propõe. Não é a primeira vez que almoçamos na Charcutaria Lisboa, e já antes provámos uma outra entrada imperdível, as migas de batata e ovo, um carpaccio de bacalhau com romã, um foie-gras com redução de vinho do Porto Vintage, a sopa de espinafres com queijo de cabra e ovo escalfado e a perdiz estufada. Mas Manuel Martins gostaria que provássemos a lista toda, e fala entusiasticamente de cada prato.


Comida "do Além"

Percebe-se. É que, apesar de esta ser comida tradicional portuguesa, essencialmente alentejana, cada prato foi pensado e testado até estar o mais próximo daquilo que Manuel considerava a perfeição. Claro que tudo começa com a qualidade dos produtos. E isso... enfim, já não é o que era, lamenta o proprietário da Charcutaria. E, ainda por cima, depois de se divorciar deixou de poder trazer muitos dos produtos que antes trazia de Mourão.

"Matava muitos porcos alentejanos, transformava-os em paio, eram os melhores paios do mundo, não tenho dúvidas. Ainda não havia a ASAE, e eu matava gansos, tinha panelas para fazer arroz de ganso, tinha sempre tudo vendido, e não era barato. Foi aí que me tornei de facto cozinheiro. No Natal só vendia perus alimentados exclusivamente por mim e que eu embebedava com boa aguardente para os matar. Não se imagina a diferença que isso faz", conta.

E ainda nem falámos da doçaria. "Aprendi a fazer o fidalgo, o queijo do céu, o morgado, a encharcada, o rançoso, e vendia tudo em Campo de Ourique." Aqui, no restaurante da Rua do Alecrim, o grande sucesso é criação sua, uma (também imperdível) bolacha de noz com doce de ovos. Mas os outros doces regionais também aqui estão, e são uma tentação depois do carpaccio de carne barrosã e da garoupa à Bulhão Pato que acabámos de comer.

As aventuras de Manuel continuaram, com a abertura de um outro restaurante, o 5 do 10, na Avenida 5 de Outubro (que entretanto fechou) e com este da Rua do Alecrim, em 1999. Depois veio outra reviravolta com o desafio de abrir um restaurante em Angola. "Fui a Luanda para dizer que não", conta. "Mas em Fevereiro de 2008 disse que sim. E ainda não abriu." Entretanto, largou o espaço da Rua do Alecrim, que perdeu clientela e "ganhou má fama".

Agora, Manuel Martins está de volta. O restaurante reabriu no dia 19 de Março, o espaço tem uma decoração sóbria e de bom gosto, com uma zona de mesas altas à entrada, uma sala intermédia, e uma outra (que recomendamos, se houver lugares) ao fundo, com uma enorme janela a ocupar toda uma parede, por onde entra a luz e os sons do Chiado ao fundo.

A ementa ainda é curta, diz o dono, mas vai aumentar. Os sabores são sempre os alentejanos, o peixe ou é bacalhau (que é o que todos os clientes espanhóis e brasileiros pedem) ou está nas sopas de tomate ou de coentros, por exemplo. Em breve surgirão outras especialidades como a sopa da panela - "é um cozido, mas fica mais suave, normalmente numa casa rica tem um bocadinho de borrego, porco e uma chouriça, e é muito aromática porque tem muita hortelã, e leva as partes que mais sabor transmitem ao caldo".

São quase três e meia da tarde e somos os últimos na sala, gozando o sol ainda tímido que entra pela grande janela. É tempo de nos despedirmos de Manuel Martins, mas prometemos voltar. Quando for a época do tomate bom, claro, ou então para um prato de silarcas, esses cogumelos bravos que, diz Manuel, "são comida do Além".  

Nome
Charcutaria Lisboa
Local
Lisboa, São Paulo, Rua do Alecrim, 47
Telefone
213460672
Website
http://www.restaurantecharcutaria.com
Preço
30€
Cozinha
Alentejana
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