Um homem bem-parecido, grisalho, de tez clara e barba ruiva salpicada de branco sai do restaurante D.O.M. e caminha em direcção a outro restaurante, o Dalva e Dito. Está atrasado meia hora para um encontro. Ao vê-lo ao longe, a sua assessora deixa escapar um suspiro de alívio. Contudo, a tensão não se dissipa de todo. No Dalva e Dito está tudo preparado, mas o atraso compromete a agenda. Estamos em São Paulo, num oásis sócio-económico chamado Jardins e o homem que parece não ter pressa é Alex Atala, um dos chefes mais badalados da cena gastronómica actual e, para a revista norte-americana Time, uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
Ainda mal saiu porta fora e alguém o detém para o cumprimentar. Arranca, mas pára de novo. Troca impressões com um jornalista estrangeiro que o acompanha e logo de seguida com outro, desta vez brasileiro. A assessora desespera com o pára-arranca e os 5 minutos necessários para percorrer os cem metros que separam os dois locais passam a 20 longos minutos. O chef paulistano chega finalmente e distribui cumprimentos e simpatia. Tem o dom da palavra e partilha-a por todos. Fá-lo de forma afável e com uma disponibilidade surpreendente.
Alex Atala começou a lavar pratos numa cozinha como forma de ganhar dinheiro e foi parar a uma escola de hotelaria pela mesma razão que muitos dos seus compatriotas o fazem ainda hoje: um visto de estudante que permite prolongar a estadia em solo europeu. Vão longe os tempos de aventura e descoberta do "moleque", ex-punk e ex-dj (como indica a nota biográfica), que entra na idade adulta a trabalhar e a viajar pela Europa com os sentidos bem abertos.
De regresso ao Brasil, com 24 anos (tem actualmente 45), traz do velho continente a experiência, os sabores e o método de aprendizagem da cozinha clássica. Mas também um reforço de identidade do "ser brasileiro". E é na vontade de explorar esse sentimento e de o transportar para a cozinha que reside o essencial do seu trabalho e, com ele, uma boa parte do seu sucesso e reconhecimento actual.
Até há pouco mais de vinte anos os restaurantes de alta cozinha no Brasil eram sobretudo italianos ou franceses e os produtos genuinamente locais raramente faziam parte dos cardápios. Curiosamente, devido à dificuldade em importar determinados ingredientes, chefs gauleses como o agora carioca Claude Troisgros, tiveram um papel importante no desenvolvimento e divulgação de determinados produtos brasileiros, até então praticamente conhecidos apenas a nível regional. No entanto, o impacto viria a ter maiores repercussões quando Alex Atala entrou em cena. Afinal tratava-se de um chef brasileiro, ainda para mais de São Paulo, a maior cidade do país e onde a cena gastronómica é mais forte.
Tucupi, jambu e formigas
Atala assumiu a causa, desenvolveu-a e amplificou o efeito, utilizando as suas faculdades enquanto cozinheiro e líder de equipa mas, igualmente, enquanto orador, nos múltiplos ecrãs, ou numa das suas muito concorridas palestras, por esse mundo fora. Com ele, ingredientes locais como o tucupi (líquido extraído de um tipo específico de mandioca), o jambu (erva que transmite uma sensação eléctrica no contacto com a língua), o palmito pupunha (tipo de palmeira), o filhote e o pirarucu (peixes da Amazónia) ou, mais recentemente, a priprioca (raiz cuja essência era utilizada apenas na perfumaria) ou as formigas (que são utilizadas por certas tribos da Amazónia como um tempero e não como fonte proteica, como na Ásia), ganharam uma nova dimensão identitária.
Da mesma forma, num país com uma indústria agrícola intensiva que usa e abusa dos agro-tóxicos, Atala veio dar voz a uma série de pequenos produtores, ajudando-os no desenvolvimento e escoamento de diversos produtos de origem local contribuindo dessa forma para que "sustentabilidade" não seja apenas uma palavra vã.
Em época de globalização as atenções gastronómicas, até então muito centradas no eixo europeu do Guia Michelin, difundem-se rapidamente para outras latitudes. Inspirador e carismático, Atala é um dos star chefs que mais proveito tem tirado deste novo paradigma, contando com a ajuda providencial do júri de um novo player, que mediaticamente passou a ombrear com o guia vermelho: a lista do The World"s 50 Best Restaurants, onde consta como chef do 6º melhor restaurante do mundo (depois de ter sido 4º em 2012). A sua notoriedade deu uma maior visibilidade não apenas à cozinha e aos produtos brasileiros, mas também aos restaurantes e chefs do seu país, que têm aproveitado a onda para desenvolver os seus projectos, todos eles com um forte ADN brasileiro. Destes, destacam-se nomes de Helena Rizzo (Maní /São Paulo), Alberto Landgraf (Épice/São Paulo), Rodrigo Oliveira (Mocotó/São Paulo) e Thiago Castanho (Remanso do Bosque/Belém do Pará) - curiosamente, quatro dos nove nomes brasileiros que integram a lista dos 50 Melhores Restaurantes da América Latina (dos mesmos organizadores do ranking mundial), uma lista que recentemente consagrou o D.O.M. com o segundo lugar.
Um jantar no D.O.M.
Ao contrário do que acontece noutras áreas, em que o acesso ao trabalho de determinada personalidade se faz através de um suporte que facilmente se multiplica - seja ele um filme, uma música ou um livro - o de um chef deste nível é restrito, daí serem muito mais os que conhecem Alex Atala e a sua mensagem através dos media, do que propriamente o que ele coloca no prato - mesmo contando que além do D.O.M. há o mais acessível (em número de lugares e preço) Dalva e Dito, o segundo restaurante do chef paulistano, dedicado a uma cozinha brasileira rústica com apresentação cuidada.
Antes da visita recente tinha estado por duas vezes no D.O.M., uma em 2005 e outra em 2007. A lista dos melhores restaurantes do mundo não tinha o impacto que tem hoje, mas Atala já era um fenómeno no Brasil e fora dele. A primeira visita foi fascinante: pela surpresa, criatividade e conjugações de sabores diferentes. Na segunda vez, apesar do elevado nível, o factor surpresa dissipou-se e, por isso, foi menos marcante.
Nos 6 anos que separam essa experiência da última, neste Verão, muito se passou ao nível da cozinha mundial, nomeadamente o surgimento e afirmação de novos actores vindos de latitudes diferentes. Alex Atala não é mais o único chef mediático a usar produtos exóticos, mas o seu estatuto e reconhecimento atingiu o topo. E o D.O.M.?
No essencial a configuração do espaço parece manter-se. A elegante sala (de 52 lugares) continua imponente, graças ao enorme pé direito, e o show cooking mantém-se visível através da cozinha envidraçada que se vislumbra da sala.
A iluminação reduzida cria um ambiente mais intimista. Vê-se uma ou outra pessoa sozinha, alguns executivos, mas, sobretudo, casais e pequenos grupos de amigos. Não há uma atmosfera cerimonial nem a cumplicidade entre mesas como vi no Noma (em Copenhaga, actualmente 2º melhor do mundo), ou no Mugaritz (em San Sebastian, 4º lugar na mesma lista), onde mais de 70% dos clientes viajam de outros países de propósito para aí jantar. A grande maioria parece ser brasileira, mas não necessariamente acólitos de nação foodie, ou seguidores de tendências.
Talvez por isso, até há muito pouco tempo o DOM era um dos raros restaurantes do top 10 do World"s 50 Best Restaurants que tinha a opção de serviço à carta. No entanto, já este ano, Alex Atala decidiu arriscar ao jantar, apenas existe agora a opção de menu de degustação, com o de 4 pratos a custar 357 Reais (115€) e o de 8 pratos, 495 Reais (160€).
Ao contrário do que é comum pensar-se, uma boa parte dos restaurantes de topo não muda completamente a sua carta em cada estação. O D.O.M. é um desses casos e na sequência de propostas que serviram havia pratos novos, outros menos recentes e um ou outro clássico.
O menu procura contar uma história (o percurso do restaurante e do autor) e tem uma sequência lógica, mas não previsível. O factor surpresa é recorrente, mas há menos provocação do que esperava, mesmo sabendo que Atala sempre teve o cuidado em encontrar soluções confortáveis, em termos de sabor, na utilização de produtos que a maior parte dos clientes (inclusive brasileiros) nunca experienciou.
É na primeira leva de pratos que se encontram as propostas mais arrojadas e surpreendentes. Destes destaco o impressionante ceviche de flores e mel de abelha indígena, a pupunha fresca com vieiras e um forte molho de coral e um divino arroz negro levemente tostado com legumes verdes e leite de castanha do Pará.
Os clássicos confortáveis
Depois entram os clássicos e confortáveis, como o deliciosamente ácido filhote com tucupi e tapioca, o fettucine de palmito, a costeletinha ao malbec com mandioca Brás, ou ainda, o aligot, que faz a ponte com as sobremesas. Pelo meio há ainda uma provocação que só por preconceito cultural pode ser recusada: abacaxi com formiga amazónica. A proposta é simples - um quadrado do fruto e duas formiga no topo - e os sabores evocam o gengibre e o lemongrass (o chef conta que deram a provar estes dois últimos ingredientes a um índio da região e ele ficou surpreendido porque sabiam a formiga).
Os produtos e a inspiração do menu do D.O.M. são, na generalidade brasileiros, mas isso não implica que não recorram a receitas de outras latitudes para se exprimirem. Quer seja a França, no aligot (um clássico do D.O.M. adaptado da tradicional receita francesa de puré de batata e queijos em que o brasileiro utiliza queijo-de-minas padrão com gruyère); ao Peru, no ceviche de flores; a Itália, no fettuccine de palmito à carbonara, ou até mesmo a Portugal, no "à Brás" de mandioca que acompanha a costelinha.
Há pormenores neste menu (ou neste caso, "pormaiores") que marcam a diferença. A execução técnica irrepreensível, as conjugações surpreendentes que apelam aos cinco sentidos e os sabores muito precisos - e que nos oferecem a paleta completa: doce, ácido, salgado, amargo e umami.
Para completar esta experiência de grande nível e há ainda o óptimo serviço de vinhos da sommelier Gabriela Monteleone e um grupo de empregados de sala competente e amável.
Alex Atala pode ser um gentleman no trato e ter o dom de conseguir conciliar inteligência, criatividade e capacidade de comunicação como poucos, mas não abandona os seus valores, práticas e tradições, ou até mesmo um lado mais sombrio, em troca de um consenso. Recentemente, no MAD Symposium (em Copenhaga), dirigido a profissionais do meio e cujo tema era "guts" ("entranhas", mas também, "coragem"), fechou o evento matando uma galinha em frente ao público depois de passar um vídeo em que mostrava que por detrás da beleza de um prato há a morte. "A morte acontece", era o tema da sua apresentação. Ex-punk?
Nome
D.O.M.
Local
Estrangeiro, Brasil, Rua Barão de Copanema
Telefone
0
Horarios
Segunda a Sexta das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 00:00
Sábado das 19:00 às 00:00