A “notícia acerca da minha morte é manifestamente exagerada”. Em abstracto, esta paráfrase de Mark Twain poderia atribuir-se à “cozinha francesa”, cujas técnicas e princípios continuam a ser aplicadas em muitos dos novos restaurantes que têm surgido em diversos bairros parisienses. Paris fervilha de novidades gastronómicas. Ser uma cidade de tendências onde se encontra tudo o que há de bom, mas também logros descarados só para manter o tom do que “está a dar”, é a sua génese. Em Paris coexiste a cozinha de “excelência”, seja ela tradicional, moderna ou clássica, e a de propostas efervescentes para alimentar tendências cadentes.
Tem-se vaticinado a morte da cozinha francesa com o pretexto da revolução que a cozinha espanhola trouxe para a mesa no início do século. Uma pode subsistir à outra, sendo complementada com novas técnicas sem alterar a sua matriz e continuando a ser a fonte onde muitos vêm beber, mesmo que alguns não o queiram reconhecer. Ou seja, os franceses fugiram das aberrações medievais e codificaram a forma de cozinhar e de comer, para se obterem refeições equilibradas, feitas com produtos sãos (de época e com sabor), cozinhados com elevada qualidade. O que tem surgido é o apuro desse trabalho para o melhorar através da química e da tecnologia.
Alguns desses casos práticos estão à vista através de pequenos restaurantes (bistros) que praticam uma cozinha rigorosa, sem aparatos de sala, baseada em bons produtos e técnicas acertadas. A onda “bistronomie” (expressão atribuída em 2004 ao crítico Sébastien Demorand) resgatou a chamada “cozinha gastronómica” dos salões burgueses para espaços mais acessíveis, a preços apetecíveis.
O L’Envie du Jour abriu há cerca de um ano no bairro 17 e veio renovar a oferta local, a par de outros restaurantes recentes como o Coretta, o Viola ou o Le Tourbillon. Vinte lugares distribuídos pela sala confortável, de tons sóbrios e decoração prática, a que se juntam mais cinco cadeiras ao balcão, local privilegiado para ver Sérgio Dias Lino pôr em prática os conhecimentos adquiridos em diversos restaurantes com estrelas Michelin no Sul de França, entre eles a casa Pic, onde foi subchef do Bistro 7, de Anne-Sophie Pic. A oferta diária cinge-se a duas entradas, um prato de peixe e outro de carne, e duas sobremesas. Não há menu, apenas a fórmula de escolha: almoços de semana a 16€ com prato do dia, copo de vinho e café; jantares a 24€ com entrada e prato, ou prato e sobremesa; e por 32€ a versão completa com entrada, prato e sobremesa. Os domingos são dia de brunch a 25€ (11h-15h).
O próprio chef veio à mesa recolher o pedido, e seguindo a sua sugestão para novos clientes pediu-se uma porção reduzida das entradas e dos pratos para se ficar a conhecer melhor a sua cozinha. Regressado para trás do balcão onde outro cozinheiro ia avançando com as preparações, o chef enviou para a mesa uma rilette de salmão, através de Alex, o seu simpático e eficiente sócio que faz o serviço de sala. O peixe cozido a vapor, picado e envolvido em vinho branco, manteiga fresca e ervas, chegou na companhia de um agradável puré de grão. Dois aperitivos que resultaram em pleno ao serem barrados na baguete rústica, bem crocante e de interior húmido que chegou até nós num saquinho de papel como se viesse da padaria. A primeira entrada foi um delicado “puré de abóbora” (que está no pico da sua época), com toucinho crocante e a sua espuma, numa ligação simples e gulosa onde o “doce” natural do fruto da aboboreira jogou com o “sal” da carne curada, mas não fumada. Simples e envolvente o “ovo escalfado com cogumelos” sobre uma base de puré do fungo e uns pedacinhos frescos salteados da variedade “paris”, que não sendo das mais interessantes estava bem valorizada na confecção. Sobre o ovo, que foi feito mais pela técnica da baixa temperatura que pela de escalfar (clara quase translúcida e gema líquida), uma espuma de cogumelo e pedaços crocantes de pain d’épices (bolo tradicional de especiarias). Uma simbiose voluptuosa de sabores franceses com recursos técnicos da cozinha moderna espanhola.
Nos pratos, foi interessante a ligação de uma tranche de pescada, muito fresca e suculenta, mas de sabor pouco expressivo, com uma espuma de açafrão das índias que lhe espevitou o carácter. A sobriedade do peixe conjugou-se de forma inteligente com um poderoso e marcante risoto cereal feito com o negro arroz venere, cevadinha e quinoa, além de puré de beterraba. Chegou depois um belíssimo acém de vitela estufado que se derretia na boca, com amendoim e especiarias a darem corpo e alma ao molho, que só pecava por estar um nadinha puxado ao sal. A companhia era de gabarito, com um óptimo gratinado de cherovia.
Gulosas e bem executadas — assim estiveram as sobremesas. Mil-folhas de cheesecake, onde o creme vinha montado em duas placas de massa folhada, em redor um picadinho de ananás e um pouco de caramelo salgado feito com manteiga. O macaron em versão tradicional (apenas um biscoito grande de “carapaça” sequinha a rachar) barrado com praliné (chocolate com avelã torrada) e coberto com espuma de chocolate e café. Carta de vinhos com cerca de trinta opções, e boa parte delas a copo, com preços abordáveis para o contexto, sempre muito especulativo neste ponto. Serviço descontraído, mas profissional e sem falhas.
Uma refeição belíssima e completa por cerca de 40 euros em Paris é um bom sinal dos tempos. Bons produtos e confecções meticulosas numa mini-equipa de profissionais dedicados. Anteriormente esteve aqui o La Bigarrade, que chegou às duas estrelas no guia vermelho. Será um bom presságio? O jovem Sérgio acaba de receber o primeiro “toque” numa escala de cinco, do também prestigiado guia Gault et Millau. Com o L’Envie du Jour cumpre-se o desejo de ter uma boa mesa a preços módicos em plena capital francesa.
- Nome
- L’Envie du Jour
- Local
- Estrangeiro, França, Rue Nollet, 106 - Bairro 17
- Telefone
- +33 1 42 26 01 02
- Horarios
- Domingo, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 22:00
- Website
- http://www.lenviedujour.com/
- Preço
- 40€
- Cozinha
- Autor
- Observações
- Cartões de débito e crédito. Não fumador (com esplanada). Aconselhável reserva antecipada.