Fugas - restaurantes e bares

  • Enric Vives-Rubio
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Um poço com virtudes marítimas

Por Fortunato da Câmara ,

Fica num bairro tradicional de pescadores. Gente do mar, castiça e de trabalho, peixe virtuoso e sal. Ingredientes quanto baste para se saborear o principal património de Setúbal à mesa.

"Em Roma sê romano." É um dos adágios que sobreviveu à Antiguidade e que se pode actualizar de cada vez que se visita a antiga Cetóbriga. Aqui chegados, a paráfrase mais adequada à velha máxima seria qualquer coisa como isto: "Em Setúbal coma peixe." Foram as terras mais baixas das margens sadinas que deram origem à milenar Caetobriga, agora denominada de Setúbal. A conhecida Avenida Luísa Todi funciona hoje como a Cardus Maximus dos tempos romanos, por ser uma via transversal da cidade e à volta da qual todo o comércio gravita. É nesse eixo central que fica o Mercado do Livramento, barómetro do melhor peixe que se pode encontrar por estas bandas e arredores, e local de visita obrigatória para se sentir o pulsar das gentes e a qualidade abundante dos produtos que o mar dá. 

A grande cidade piscatória absorve com naturalidade o potencial da sua localização geográfica na unidade do rio Sado com o mar Atlântico e a serra da Arrábida. A influência marítima é preponderante e visível em especialidades emblemáticas que preenchem as ementas de grande parte da restauração local, transformando-a numa espécie de Meca do peixe para quem mora na Grande Lisboa. A oferta é ampla e em vários estabelecimentos é quase decalcada do vizinho que o antecede, só que infelizmente o estar lado a lado às vezes também significa estar "pendurado" no prestígio de outrem. Ou seja, tal como noutras situações da vida, também aqui é preciso separar o trigo do joio, e, no meio de um leque tão extenso de moradas, perceber onde estão as que não transigem com a qualidade e a autenticidade dos produtos. O que é de aquicultura não pode ser vendido com o apêndice "de mar" sob pena de se ir uma vez e não mais voltar... 

Felizmente ainda vão existindo algumas moradas fiáveis. Uma das possíveis fica fora das sequências que ladeiam as ruas e avenidas do centro, sendo necessário um pequeno desvio até ao carismático Bairro das Fontaínhas, na freguesia de São Sebastião, para encontrar, numa das históricas áreas residenciais de pescadores, o Restaurante Poço das Fontainhas. A linha férrea traça a fronteira que separa o bairro do cais das embarcações que atravessam o Sado quando se quer ir ao encontro de Tróia. Aos pés da ladeira revestida de casario antigo está alojado um antigo poço - dos vários que existem ou existiram na zona - que dá nome ao restaurante aberto em 1993, paredes-meias com o local que em tempos foi o ponto de chegada das águas que brotavam da escarpa.

Das fontainhas epónimas já não emerge a fonte de vida mas o poço mantém-se como um ponto, neste caso de encontro, para os que procuram o ex-líbris do restaurante. Uma vistosa montra de peixes e mariscos, rica em exemplares frescos de aparência imaculada, e prontos a irem até à grelha ou para o tacho. Nas propostas habituais pode encontrar-se arroz de lagosta, cabeça de cherne, arroz de garoupa, caldeirada à setubalense, raia à varino, ensopado de enguias ou alfaquim frito (peixe-galo) com açorda de ovas, mas que já tinha terminado aquando da nossa visita, uma falta a lamentar pois é uma das especialidades mais procurada.

Não se ficou mal com meia dúzia de "ostras do Sado" (20 euros/kg) logo a abrir as provas. Fresquíssimas e acabadas de chegar dos campos de ostreicultura localizados nos sapais da região, mas de calibre demasiado pequeno e com alguns resíduos no interior resultantes da abertura das conchas. A "saladinha de ovas" (3,50 euros) deu boa conta de si com o tempero certeiro no equilíbrio avinagrado a jogar com as ovinhas carnudas, saborosas e sobretudo sem estarem secas no interior. Sem chama era a "saladinha de lulas" (4 euros) cortada em pedaços robustos, pois o tamanho original do molusco era de monta, com os troços envolvidos num picadinho de cebola e azeite a acusarem sabor amargo a carvão e consistência emborrachada, o que arruinou o conjunto.

Era incontornável pedir uma dose de "choco frito" (12,50 euros), para aferir frituras e eventualmente algo que o diferenciasse dos demais - há quem lhe dê um toque mais picante. Neste caso surgiu sóbrio de sabor, perfeito na textura e sem falhas ao frigir, acompanhado de batata frita e de um inenarrável molho cocktail, que certamente não pretende ser inovação (espero), pois não acrescenta nada ao popular petisco. 

Reconfortante e sem sobressaltos estava a "açorda de camarão" (11 euros), bem guarnecida de espécimes e de sabor apurado graças ao caldo de cozer o marisco. As estrelas da mesa e símbolos da cozinha regional foram os "salmonetes à setubalense" (42 euros/quilo) que trouxeram sabor refinado e elegância à refeição, ao serem grelhados com competência e a terem ao lado o molho dos seus fígados plenos de delicadeza - uma espécie de foie gras dos mares -, e que veio sublinhar ainda mais a excelência da matéria-prima. 

A lista de sobremesas estava um pouco desfalcada e para fugir a trivialidades experimentou-se a denominada "pé de salsa" (3 euros). Uma tarte fechada, baixa e de massa crocante, recheada no interior com doce de chila, creme de ovos e amêndoa e sem excessos de açúcar, o que permitiu sentir-lhe os sabores bem definidos. 

Serviço feminino, escorreito e popular, com toques de humor e descontracção, numa casa onde se concentra mais valor no preço dos pratos do que na apresentação das mesas, com toalhas e guardanapos de papel. A excepção vai para os copos de vinho, que cumprem os requisitos mínimos para uma carta não muito extensa e de preços ajuizados. A lista contempla as principais denominações vinícolas, mas onde o grande enfoque vai naturalmente para os rótulos da região. O ambiente geral do espaço é simples, com a sala principal a apresentar uma decoração baseada em motivos ligados ao mar com peixes dispersos em representações feitas de ferro forjado. A esplanada faz as vezes de zona de fumadores e, além de ser o local da grelha, abarca toda a reentrância onde ficam as antigas fontainhas do poço, numa estrutura fechada de gosto duvidoso em estilo marquise.

A génese do Poço das Fontainhas está no trabalho dos homens do mar e na simplicidade em saber usar o peixe e o sal, elementos que perpassam a história da região desde o século X. Antes da fundação de Portugal, o sal de Setúbal já era moeda de troca para obter os peixes que os vikings traziam dos mares do Norte da Europa. A importância salina na região esteve sempre presente ao longo dos séculos, com os cristais sadinos a serem também trocados por cereais no século XVI (A exploração e o comércio de sal em Setúbal, 1955), e a servirem para pagar a saída dos holandeses de terras brasileiras no século XVII (Histoire Naturelle & Morale de la Nourriture, 1987).

A poucos metros do restaurante fica o Museu do Trabalho Michel Giacometti. O etnólogo francês documentou esta terra de brava gente na exposição O Trabalho faz o Homem. Volvido um quarto de século, não é menos verdade dizer que, com trabalho, o mar, o sal e o peixe continuam a fazer Setúbal.

Nome
Poço das Fontaínhas
Local
Setúbal, São Sebastião, R. Fontaínhas, 96/98
Telefone
265534807
Horarios
Terça a Domingo das 12:00 às 16:00 e das 19:00 às 22:30
Preço
25€
Cozinha
Trad. Portuguesa
Espaço para fumadores
Sim
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