Fugas - restaurantes e bares

  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos
  • Nuno Ferreira Santos

Tacho, alma e… alguma calma

Por Fortunato da Câmara ,

Em terra de pescadores, quem tem mão para o tacho pode diferenciar-se no manancial de peixe grelhado. A Casa Mateus, em Sesimbra, trabalha os sabores locais de forma tradicional sem tirar o pé do mar, mas como se estivéssemos em casa.

A “praia” que há oito séculos recebeu de D. Sancho I foros e privilégios para se fazer existir como “localidade” continua a ter no mar a sua fonte de benefício. A génese de terra piscatória não se deixou perturbar com o passar dos tempos, mas era inevitável que a prodigiosa localização serra e mar lhe trouxesse outros condimentos. Ao manter-se até hoje como a “piscosa Cezimbra” definida por Camões no canto III d'' Os Lusíadas fez juntar a abundância em peixe à multiplicação do turismo através de restauração e hotelaria. A vila de Sesimbra chega ao presente carregada por uma oferta turística ampla e a caminho de esmagadora para a paisagem. Em época estival, circular e estacionar são tarefas complicadas, mas a recompensa pelo esforço serve-se à mesa através da qualidade que se encontra em diversos restaurantes.

O desafio aqui será encontrar alguma diferenciação no meio de uma oferta rica, embora generalizada a peixe grelhado e marisco. A Casa Mateus responde a esse repto de diferença ao ter uma ementa duplamente concentrada. Primeiro porque a lista é mais curta que a maioria da vizinhança, e depois por estar focada - ou “concentradíssima”, como diria alguém da margem sul - em pratos emblemáticos da zona, juntamente com um ou outro que fogem ao óbvio. Encontrá-la é simultaneamente simples e difícil, por ser central embora recôndita. Fica numa ruela interior a dois passos da marginal (à esquerda da fortaleza), logo atrás do vistoso e respeitável restaurante O Velho e o Mar.

Esta Casa Mateus existe há largas décadas, tendo mudado de localização quando deixou de ser uma residencial no centro da vila. Agora só com a função de restaurante, é uma espécie de morada secreta, tão discreta quanto concorrida aos lugares da esplanada, onde a lotação é quase a mesma da acolhedora sala de tecto forrado a madeira e paredes revestidas a pedra. Cá fora, a ardósia anuncia alguns petiscos extra do dia, juntamente com os destaques da ementa fixa onde se lê que “Para começar...” têm sempre amêijoas, mexilhões numa marinheira, queijo assado a derreter ou o mexido de tomate e queijo da ilha. Depois entra-se na parte em que “Tudo o que vem à rede...” pode ser arroz carolino de marisco com coentros, arroz carolino de polvo com salsa - a referência ao tipo de bago de arroz é pertinente -, peixe grelhado (variável a cada dia) ou espadarte com tomate, cebola e salsa. Como se diz que “Peixe não puxa carroça...”, os amantes de carne podem pedir bife com molho à cervejaria, lombo de novilho com manteiga de ervas e legumes grelhados ou umas bochechas de porco com cevada, cogumelos e abóbora. 

 

Dedicação ao cliente
Ainda antes de começar a refeição já merecia elogio a forma tranquila e empenhada como a gestão das reservas e dos poucos lugares disponíveis era feita pelo proprietário e o seu filho - a mãe, na cozinha, completa a família Mateus. Um cliente sentir que mesmo com a casa a abarrotar a sua presença é bem recebida, e perceber que do outro lado a escolha que se faz (no meio de tanta concorrência) é encarada com respeito e não como um estorvo, além do bom augúrio aumenta mais as expectativas. 

A mesa abriu com “pão, manteiga e azeitonas marinadas” (3 euros), em que além do fresco vinha pão torrado com azeite e orégãos (agradável solução de utilização do excedente do dia anterior), manteiga desempacotada e azeitonas carnudas bem temperadas sem perderem o sabor natural. Cá fora, a noite puxava a temperatura para baixo sem causar frio, mas o suficiente para o estômago se sentir acarinhado pela boa “sopa de peixe” (3 euros). Os coentros na medida certa e um toque não opressor de hortelã picada deixavam brilhar um belo e denso caldo com as devidas lascas de peixe, que quase parecia ter a riqueza de sabores de uma caldeirada. Os “canivetes à Bulhão Pato” (10 euros) surgiram com uma visível porção de alho picado que fez temer o pior, mas o receio eclipsou-se à primeira “navalhada” dada nos bivalves, também conhecidos como navalhas ou longueirão. Impecavelmente depurados, sabor marítimo presente mesmo com o alho, numa boa variação da receita tradicional de amêijoas. O ponto alto foram as “ovas ao alhinho” (10 euros), que no caso eram as peculiares de choco de sabor “amariscado” (também fazem com as de pescada) numa preparação simples, fritas em azeite e com o alho de novo em quantidade, onde foi notória a grande qualidade dos dois ingredientes. Um bailado aliáceo para as papilas, a recordar de forma antológica.

As carnes ficaram de fora nos pratos principais, onde era incontornável experimentar a “caldeirada de um pescador” (26 euros/2 pessoas) feita de forma clássica, sem “fintinhas” nem “floreados”, que os homens da pesca são gente prática mas de paladar treinado em mar alto. Por isso veio um generoso tacho com um quarteto de tamboril, pata-roxa, raia e safio, com batatas às rodelas, pedaços de tomate fresco e pimento em quantia não invasiva. Sabor e pontos de cozedura exemplares: o único reparo vai para o facto de um ou outro pedaço de peixe parecerem ter entrado tardiamente na panela, pois não incorporaram o molho na proporção dos restantes. Excelente estava a “massada, hortelã da ribeira e limão” (10 euros), feita com a massa cotovelinhos al dente, que nesse dia foi realizada com mero. O peixe saboroso de carne firme a vir em pedaços generosos com pedacinhos de camarão e um toque subtil de picante a avivar o conjunto sem incendiar nada. Nova exultação com o “bacalhau, guisadinho de grão e sames” (12,50 euros), servido em três postas finas de fritura crocante sublime e toda a alma portuguesa de um bom bacalhau seco demolhado na perfeição. Na companhia vinham três agradáveis peixinhos da horta e num tachinho à parte um guisado de grão com pedacinhos de chouriço e três partes da bexiga do bacalhau que trouxeram delicadeza de sabores e uma textura diferente ao preparado. 

Infelizmente, a parte dos vinhos tem história curta. Carta muito reduzida e escrita a lápis, quiçá porque a rotação é alta. Tirando alguns da zona de Palmela, os preços andam dentro do habitual. Os copos cumprem bem a função, assim como as temperaturas de serviço são adequadas, só falta mesmo é mais variedade de escolha no perfil dos vinhos e por consequência nos preços. Nota muito positiva para a cortesia e eficiência da família Mateus e de outro membro da equipa, que são constantes ao longo do servi? ?o mesmo com a casa repleta.

Além da casa, também o apetite já estava a ficar completo, mas ainda se conseguiu espaço para a “pêra com chocolate” (4,50 euros), a apresentar-se em tom dourado por ser cozida em açafrão-da-índia (com função mais corante que estimulante de sabor) e que tinha o interior recheado de chocolate morno, numa combinação ganha à partida e que remete para a clássica pêra belle Heléne, criada por Escoffier. Acompanhava com bola de gelado de nata, tornando tudo mais guloso para gostos comum, mas não deixava de se perceber que a qualidade (variedade) e consistência da pêra podiam ser melhores, tendo ficado um pouco molenga em vez de ligeiramente firme. Na invulgar “mousse de manjericão” (4,50 euros) sentia-se de imediato a necessidade de estar bem mais fria. No entanto, a frescura e ousadia do sabor cumpriam a função de surpreender, juntamente com um crocante de amêndoa, morangos frescos e um bolo folhado, a embelezarem a taça.

Sente-se um espírito de dedicação ao cliente que é de enaltecer nesta Casa Mateus. Há sabedoria nas preparações de tacho e alma na escolha e tratamento dos produtos. Em época alta será preciso ter alguma paciência para aguardar se não se tiver reserva, mesmo constatando que vários restaurantes nas imediações têm lugares livres. Vale a pena ficar levemente ansioso com a espera, pois, com a qualidade da cozinha e a gentileza, o ânimo rapidamente se recupera. Os pescadores sentem uma enorme frustração por terem de devolver ao mar o peixe que está fora das normas e da quota. Penso que um restaurador dedicado também sentirá um certo desalento por ter de “devolver” clientes para o mar de opções que tem à sua volta por não ter lugar para os atender, ou então assume a atitude pró-activa do proprietário que, quando lhe perguntam até que horas servem, ele responde: “Até haver clientes para servir”. Como se pode imaginar, havendo esta alma como lema de querer servir bem, e um pouco de calma do lado de quem quer comer melhor, lá se chega ao fundo do tacho e com prazer, sim senhor!

Nome
Casa Mateus
Local
Sesimbra, Santiago (Sesimbra), Largo Anselmo Braamcamp, 4
Telefone
963650939
Horarios
Domingo, Terça-feira, Quarta-feira, Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado das 12:00 às 15:00 e das 19:00 às 00:00
Website
http://www.casamateus.pt/
Preço
25€
Cozinha
Peixe e Marisco
--%>