Fugas - restaurantes e bares

  • Nuno Ferreira Santos
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Galito de terceira geração com sabores do passado

Por Fortunato da Câmara ,

No Galito, casinha de 20 lugares, pratica-se uma cozinha alentejana tradicional. O futuro da tradição parece estar assegurado agora assegurado. O neto da insigne dona Gertrudes segue-lhe agora as pisadas com o desafio de manter o padrão elevado numa cozinha plena de simplicidade.

Já passaram vários meses desde que se deu uma alteração de relevo na cozinha desta casa emblemática. A histórica dona Gertrudes, que durante anos foi a razão de romarias que levavam até Carnide indefectíveis da gastronomia alentejana, retirou-se para um mais do que merecido descanso dos fogões. A responsabilidade nas lides da cozinha saltou duas gerações da família "Galito". A mediar a passagem de testemunho por parte da avó Gertrudes ao neto Leonardo esteve o seu filho Henrique, que vê agora um dos seus descendentes - o outro colabora no serviço - assimilar toda a sabedoria da matriarca para que as receitas tradicionais continuem a ter futuro.

Desde que o espaço abriu portas, na década de 1990, que o senhor Henrique é o anfitrião. A ele se deve a extensa garrafeira que a casa possui, com uma carta de vinhos que é um tratado no que diz respeito à oferta regional. A lista tem propostas qualificadas (incluindo algumas pouco conhecidas) de sub-regiões como Estremoz, Portalegre, Reguengos, Sousel, Vidigueira e outras. Além de boas referências das várias regiões nacionais, há a destacar um leque de meias garrafas mais alargado do que é habitual, composto por vinhos do segmento médio.

Os preços é que seguem por patamares elevados, com umas quantas excepções a fugirem à especulação generalizada da carta. O serviço é de qualidade nos copos e na atenção às temperaturas, mas cobrar 10€ de taxa de rolha por cada garrafa trazida pelo cliente é no mínimo dissuasor para quem quiser optar pelo famigerado BYOB (sigla inglesa para "traga a sua própria garrafa"). Talvez fosse preferível recusar vinhos de fora e ter preços mais atraentes para que cada um encontre o néctar que mais lhe convém.

Repertório de monta é também o que se pode encontrar na variedade de pratos que percorrem o ano, assinalando épocas como a caça ou o Verão, com as suas respectivas especialidades, em paralelo com clássicos intemporais da cozinha regional e outros de origem mais tradicional. Na nossa visita havia desde pataniscas de bacalhau, iscas de porco com esparregado de espinafres ou lombo de porco frito com amêijoas - correctamente identificado com o nome algarvio, mas que haveria depois de ser (mal) apelidado de "carne de porco à alentejana".

Na mesa já estava colocada em antecipação a costumeira panóplia de entradas. Algumas foram devidamente rechaçadas, ao mesmo tempo que se pediam outras, escolhidas com propósito. A "cabeça de xara" (5,50 euros) cortada em finas fatias exibiu a delicadeza das carnes (da cabeça do porco) bem prensadas e de textura gelatinosa moderada e estava perfeita no tempero. Boa matéria-prima na "linguiça" (4,50 euros) grelhada e devidamente golpeada para libertar os sucos interiores sem secar. Muito boas as "empadas de javali" (3 euros/unidade) recheadas com um estufado da característica carne escura. A massa a quebrar em casquinha tinha o sabor guloso da gordura porcina que untou as formas. O preço é que me parece exagerado para miniaturas de recheio forçosamente escasso.

Das sugestões colocadas inicialmente, ficaram a "salada de pimentos assados" (3,50 euros), de tiras delicadas embora pouco carnudas, mas tempero esmerado; e a "salada de coelho à São Cristovão" (3,50 euros), que exibiu a carne assada com zelo, sem ficar seca, a ser apenas desfiada grosseiramente e temperada com azeite bom e vinagre idem. Claro que também não foi para trás o belíssimo "pão alentejano" (1,50 euros) e umas "azeitonas" (1 euro) de aspecto "vadio", mas com um inconfundível sabor campestre, em parte devido ao facto de a salga ter sido feita com paciência e certamente a fugir a oxidações.

Nos principais seguiu-se um desfile entre o clássico e o sazonal, para melhor se aferir a mão do novo cozinheiro. Na "sopa de tomate com carne do alguidar e ovo escalfado" (10,50 euros), os aromas libertados da terrina ao chegar à mesa anunciavam um caldo intenso, que se confirmava em pleno, fosse no sabor da sopa, ou na agradável guarnição de pedacinhos de lombo de porco cortado em cubos. As "migas à alentejana com entrecosto" (12 euros) eram troços da carne do porco, de raça alentejana (para os mais incautos é o chamado "porco preto"), fritos e bem sequinhos como se fossem um petisco. As migas, em vez de estarem sequinhas q.b., vinham enjoativas. Parecia que o "pingo" da fritura não tinha sido absorvido pelo pão quando a miga fora enrolada na frigideira. O ponto alto do festim foi um chorumoso - como diria o David Lopes Ramos - "arroz de pombo bravo à Galito" (14 euros). Caldo abundante, com o grão carolino a rebentar durante a cozedura para se embriagar na "malandrice" do precioso líquido. Finalizado com um golpe cirúrgico de vinagre que acalmou a doçura das carnes desfiadas da avezinha torcaz.

A custo, ainda se arranjou espaço para a opulência de um "fidalgo" (5,50 euros). A fidalguia do nome é patenteada pela conjugação de dois símbolos da doçaria conventual. As mortalhas de doce de ovos que, enroladas em charuto, formam as famosas "trouxas" são dispostas em redor de uma forma redonda para fazerem casulo a uma dose generosa de creme de ovos moles. Um nobre pecado da gula queimado no topo a ferro quente que aqui cumpriu com distinção os preceitos conventuais. Também a "barriga de freira" (3,50 euros) não ficou só a olhar para o seu umbigo e deu-se a provar com agrado, e até menos doce (ainda bem!) que o esperado, na junção milagrosa entre gemas de ovos, açúcar, pão e amêndoas.

Esta viagem ao Alentejo profundo é pautada por um serviço moderadamente afável e eficaz, sem no entanto se alongar muito em simpatias numa primeira visita. As singularidades da lista, desde os vinhos até às comidas, passando pelos petiscos entrantes, e até uma inédita taxa de 10€ pelo serviço de abertura de bolos... podem transformar a soma final num harmónio que resista a manter-se fechado na terceira nota da escala monetária ou que estique com facilidade até "desafinar" a conta.

Vai assim a caminho de meio século o percurso deste clã alentejano da Aldeia da Serra d"Ossa que nos anos 1970 começou a dar-se a conhecer ao país através da genuína cozinha regional das planícies douradas. Cabe agora ao neto Leonardo aplicar os conhecimentos adquiridos na Escola de Hotelaria da Pontinha, para fazer algo de aparentemente fácil. Seguir as receitas da dona Gertrudes sem esquecer cada gesto ou detalhe de execução que ela certamente lhe terá ensinado e que ao longo de décadas construíram uma memória gustativa forte que apenas se consegue manter com dedicação. Se o jovem cozinheiro igualar o feito da sua avó já será uma vitória, pois, parafraseando o Abade de Priscos, apetece lembrar que "as receitas são fáceis de fazer, o difícil é acertar".

Nome
O Galito
Local
Lisboa, Carnide, Rua Fonte, 18D
Telefone
217111088
Horarios
Segunda a Sábado das 12:30 às 15:00 e das 19:30 às 22:00
Preço
20€
Cozinha
Alentejana
Observações
Especialidades: Pezinhos de porco; Sopa de cação; Ensopado de borrego.
Espaço para fumadores
Sim
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