Cinema nos detalhes
Fazer um percurso pelo cenário de um filme é um dilema porque o real e a representação não coincidem necessariamente.
Durante anos, os espectadores da série Seinfeld familiarizaram-se com o Tom's Restaurant, no Upper West Side, onde Jerry Seinfeld e os seus amigos se reúnem. O plano de exterior do restaurante é um ritual repetido em quase todos os episódios, mas o interior é filmado em estúdio e qualquer turista que visite o verdadeiro Tom's Restaurant, com a expectativa do reconhecimento, verá que o espaço está organizado de forma diferente do que aparece na série (o que não impede o restaurante de ter as paredes repletas de retratos das personagens de Seinfeld).
Do mesmo modo, as cenas de estúdio que se vêem em Cisne Negro não foram filmadas no lugar que é suposto representarem o Lincoln Center mas no Performing Arts Center at the State University of New York Purchase, onde Bob Fosse já rodara All The Jazz. Mas, para todos os efeitos, é o Lincoln Center que vemos no filme, e o que Darren Aronofsky faz dele é um exercício de ousadia, porque converte um lugar de verniz institucional, formal, rígido e ordeiro, no que alguém comparou com o Castelo do Drácula: umas catacumbas do terror, um cabaret heterossexual alucinado.
O mesmo é válido para o New York City Ballet, companhia que representa a tradição, e que se dedica a interpretar o repertório do seu fundador, George Balanchine, como se fossem as sagradas escrituras.
Como outras bailarinas que falaram à imprensa americana sobre Cisne Negro, Wendy Whelan elogiou-o no Daily Beast como um retrato da tortura física e angústia psicológica que pendem sobre bailarinas aspirantes a um papel titular. Não é uma opinião unânime: a bailarina que me conduz numa visita guiada pelo Lincoln Center que estudou na Juilliard School, não quer nada com o ballet clássico e está a coreografar uma peça para uma das 1200 companhias de dança que existem em Nova Iorque considera o filme uma colecção de estereótipos. As bailarinas já nem sequer usam carrapitos como no filme, acima da nuca, diz ela, mas no alto da cabeça. O cinema está nos detalhes.
O Lincoln Center é o maior centro de artes performativas dos Estados Unidos (e "o mais importante do mundo", proclama, no seu site oficial). Foi pioneiro, inspirando sucedâneos noutras cidades, até mesmo fora do país, como o Barbican de Londres. Na base da sua fundação, em 1959, está o princípio do acesso democrático às artes, algo que perdura até hoje, na oferta de programação gratuita e nos preços dos espectáculos. Em anos recentes, a política cultural em Portugal viveu obcecada com a criação de novos públicos, o que soa como um bom programa de intenções, mas não parece ter sido muito consequente. Coisas muito práticas que uma instituição privada como o Lincoln Center (por onde passam quase cinco milhões de pessoas por ano) faz para captar público, incluindo o novo: é possível assistir a um espectáculo do New York City Ballet ou a uma ópera na Metropolitan Opera por 20-25 dólares (14 a 18 euros); por 15 (menos de 11 euros), os espectadores podem ver um ensaio corrido da Filarmónica de Nova Iorque, às terças-feiras de manhã; encontros informais com artistas, com uma componente educacional, visitas guiadas aos bastidores.