Fugas - viagens

Rui Gaudêncio

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Barcelona entre chineses e cemitérios

Mas é precisamente por detrás de um desses hotéis que resistem ainda duas ruas que alguns reconhecem como aquilo que um dia conheceram. "A novela negra falava sempre do Raval porque era aí que estavam as prostitutas e os traficantes", diz Sergi Doria. "Agora essa novela negra só existe nos livros. Há ruas aqui que já só sobrevivem na memória - lembro-me de uma sempre cheia de mulheres, autênticas personagens de Fellini".

E, no entanto, as personagens de Fellini, mesmo circunscritas a duas ruas, não desapareceram completamente. Nas ruas Robadors e Sant Ramon, mulheres de mini-saias coloridas, cabelos pintados e maquilhagens carregadas percorrem os passeios entre o Bar Coyote e o Bar Alegria, e convidam os clientes a subir as sombrias escadas que conduzem à casa de Carmen de Mairena, transexual que deixou para trás uma breve carreira televisiva, e alguns filmes pornográficos, e que hoje, para além de alugar por cinco euros à hora quartos às prostitutas vindas do Leste e de África, está - contam os jornais - a pensar apresentar-se como candidata por Barcelona ao Parlamento.

Cidade sem rugas

O que transformou o Raval, para além da operação de regeneração urbana, foi a chegada de muitos novos imigrantes e aqui estamos no universo de Biutiful. Ao lado das prostitutas da rua Robadors há supermercados paquistaneses, barbeiros filipinos, talhos hallal, e até uma mesquita. Mulheres de longas túnicas e véu na cabeça entram para prédios nas ruas próximas. Pela Calle Joaquin Costa acima a caminho do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e do Centro de Cultura Contemporânea, onde rapazes e raparigas andam de skate, aproveitando o sol, passamos por um Donër Kebab Amigo, uma Peluqueria Filipino, uma Merceria Bismillah.

Não foi aqui, no Raval, que Iñarritu filmou Biutiful (à excepção de uma cena ou outra) as cenas com imigrantes chineses a trabalhar em fábricas clandestinas são filmadas em cidades da periferia de Barcelona, em Hospitalet de Llobregat, Badalona, Santa Coloma de Gramanet. Mas os negros que no filme vendem as malas e chapéu-de-chuva feitos pelos chineses nas fábricas clandestinas, esses estão aqui, no centro da cidade, nas Ramblas.

Entramos nas Ramblas e mergulhamos no rio contínuo de turistas que descem a mais famosa artéria de Barcelona. À nossa volta os homens-estátua esforçam-se para ser os mais originais e captar a nossa atenção um deles tem à vista apenas a cabeça, que, com um chapéu de cozinheiro, surge no meio de um prato de paella, ao lado de um corpo decepado também vestido de cozinheiro. Imigrantes asiáticos atiram ao ar pequenos apitos com luzes que fazem um som de assobio metálico.

Os turistas passam indiferentes e compram goffres com chocolate nas bancas laterais. Seria preciso uma espectacular perseguição policial contra os clandestinos, como a que Iñarritu filma, para que a realidade dos imigrantes e a dos turistas se cruzassem.

"Os barceloneses estão cansados de uma Barcelona demasiado feita para os turistas", afirma Sergi Doria. "Estão cansados por a Rambla se ter tornado num passeio exclusivamente turístico e muitos deixaram de lá ir. Claro que [com as transformações urbanas] se ganhou em muitos aspectos, mas para os barceloneses a cidade tornou-se mais bonita mas perdeu alma, como uma mulher que fez uma plástica. Nós gostávamos dela com algumas rugas." É no final dessa perseguição policial que Uxbal é apanhado na Plaza Real, já do outro lado das Ramblas, a caminho do Bairro Gótico. Vamos por aí, sempre seguindo os conselhos de Doria, à procura dessa Barcelona dos espíritos que é também a da personagem de Bardem. O nosso destino é o Cemitério de Este, o mais antigo da cidade. Mas antes disso vamos entrar pela Calle Princesa, transversal da Via Layetana, na antiga zona dos grémios medievais, à procura do Rei da Magia.

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