Antigamente, a zona à volta do cemitério era um local escuro, de fábricas, poluição, lojas de lápides funerárias e o Somorrostro, território de bruxas que liam o destino aos desesperados. Agora é uma zona de prédios modernos e ruas limpas que nos conduzem até à praia do Bogatell, onde os reformados fazem ginástica.
Seguindo ao longo das praias, novamente em direcção ao centro, vamos dar à Barceloneta. Sergi Doria tinha-nos dito que este bairro de pescadores criado no século XIX era outro local onde um homem como Uxbal poderia morar. "É um bairro de casas de dois andares, mas as famílias subdividiam-nos e faziam casas de 25, 30 metros quadrados, no limite do habitável.
Chamavam-lhes quartos de piso." E dera-nos uma morada: Calle de la Sal nº 5. Aí, disse, na livraria Negra y Criminal, encontraríamos Paco Camarasa. E, de facto, lá estava ele, rodeado por fotografias de Humphrey Bogart e outros homens de chapéu na cabeça, gabardina de gola levantada, cigarro ao canto da boca e pistola na mão, e embalado pelo som de jazz de crónica policial. Sobre a mesa, um cinzeiro em forma de pistola.
"Há dois pontos de vista sobre a cidade", diz-nos. "Há o dos turistas e o dos espanhóis, dos barceloneses, e para estes o ponto de referência é o Bairro Chino, Pepe Carvalho [o detective criado por Manuel Vásquez Montalbán], a novela negra, [Eduardo] Mendonza, [e o seu livro] A Cidade dos Prodígios. É uma cidade que tem mais potencial na literatura do que no cinema. O cinema da escola de Barcelona, nos anos 70 e 80, era uma tentativa de fazer cinema francês em Barcelona em plena ditadura e não era nem cinema, nem francês nem ninguém entendia coisa nenhuma.". Dá uma gargalhada.
A Barcelona de Carvalho, de Montalbán, de Mendonza é uma cidade que está quase já só nas memórias. Mas há ainda restos dela, e alguns aqui, na Barceloneta. "Este é um bairro muito tradicional, de pescadores e estivadores. Esta livraria, por exemplo, não tem montras para a rua mas tem cave. Todas estas caves durante muito tempo, no pós-guerra e na altura do franquismo, eram usadas para contrabando. Podíamos encontrar aqui tabaco americano, meias de nylon, transístores japoneses. As pessoas sabiam e a polícia também sabia. Isto é Barcelona, uma cidade fascinante, odiosa, maravilhosa."
Cidade estranha
Uma cidade literária mais literária que cinematográfica, insiste Paco (também o dissera Sergi Dória: "Barcelona no cinema não a vi nunca. O que vi foram visões muito pessoais dos realizadores.
Almodóvar mostrou a Barcelona dos travestis. Woody Allen a dos turistas, que se vê a partir dos hotéis"). E sobretudo mais literária que Madrid. "Madrid não existia", responde Paco. "Existia a corte, e mais nada. Não tem tradição, não existe o modernismo como figura, não existe Gaudí e tudo o que ele significa. É simplesmente a capital de um Estado pobre, dominado pela ditadura. Barcelona é tudo aquilo de que falámos, é o plano Cerda [plano urbanístico de meados dos século XIX], o plano maravilhoso de uma cidade, é a indústria têxtil, os primeiros vinhos que chegavam, a burguesia no século XIX só havia duas burguesias, a basca e a catalã.