Fugas - viagens

Rui Gaudêncio

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Barcelona entre chineses e cemitérios

A loja, fundada em 1881 (é a mais antiga loja de magia da Europa), lá está, no número 11. Na montra os cartazes anunciam Dante, o Mágico da Europa, e mostram-no com o seu cabelo penteado com brilhantina, o bigode impecavelmente aparado, a ouvir os sussurros de dois diabinhos vermelhos instalados nos seus ombros. Do outro lado, um mágico de turbante tem o rosto emoldurado por um enigmático ponto de interrogação. A porta, tapada por dentro por uma cortina, está fechada. Abrimo-la e no interior há mais cortinas a esconder uma sala com uma mesa de pano verde. Nas paredes, fotos autografadas dos grandes mágicos europeus, com dedicatórias ao Rei da Magia, Joaquín Partagás Jaquet.

Não estamos tão longe de Uxbal, o homem que fala com os mortos, como poderíamos pensar. Aqui há magia (o Museu da Magia, criado em 2002, com colecções de magia e ilusionismo do século XVIII, tem estado fechado para remodelações mas reabre este mês) e... chineses.

No meio de um cartaz amarelo surge o rosto inquietante de Fú-ManChu, o grande mago, que na realidade não era chinês mas sim inglês, chamava-se David Bamberg e se instalou na Argentina onde trabalhou até à sua morte, em 1974. E numa fotografia descobrimos Li Chang, "o demónio amarelo", na verdade Juan Forns Jordana, nascido em Badalona em 1916 (morreu em Barcelona em 1998) e aprendiz de Fú-ManChu.

Mas temos que seguir caminho porque o Cemitério do Este fica longe, em Pueblo Nuevo, ainda é preciso atravessar toda a nova zona olímpica da cidade e temos que chegar antes que anoiteça. "O Cemitério do Este veio substituir no início do século XIX, os diversos campo-santos paroquiais da cidade fortificada", explica Sergi Doria no seu Guia da Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, onde desvenda os segredos da cidade gótica do autor de A Sombra do Vento. "Durante décadas a necrópole de Pueblo Nuevo conviveu com fábricas escuras, o cheiro a detritos do Bogatell e os pátios das barracas do Somorrostro, com as suas ciganas [...]".

Cidade odiosa, maravilhosa

Não há ninguém à vista no cemitério. À porta há uma máquina rotativa de onde, colocando uma moeda, se podem tirar flores.

Avançamos pelas ruas feitas de paredes altas de gavetões e por entre as palavras de despedida gravadas em pedra. Biutiful tem uma cena passada num cemitério (que não é este), na qual Uxbal e o irmão vendem o gavetão do pai e vão assistir ao retirar do corpo que, surpreendentemente, está embalsamado.

Aqui, no Cemitério do Este, os mortos não falam ou pelo menos não falam connosco. O silêncio é enorme, só interrompido pelos gritos das gaivotas e pelo som do vento nos papéis que embrulham as flores já secas.

Percorremos as ruas, viramos as esquinas, desorientamo-nos no meio do traçado rectilíneo. Gatos dormem em cima de túmulos, estátuas erguem os olhos para o céu. Há jazigos de portas abertas e vazios. Há corações de flores vermelhas de plástico e bonecos do Walt Disney no túmulo de uma menina. Há cabeças, mãos e pés de cera no túmulo de El Santet, um empregado dos armazéns El Siglo que, explica Doria no seu livro, "anunciou antecipadamente aos companheiros a sua própria morte num voraz incêndio" e cujo nicho se tornou local de peregrinação, onde os devotos deixam bilhetes angustiados pedindo ajuda. E há a inquietante escultura do Beijo da Morte, com as vértebras da Morte a aparecerem, salientes, por entre as suas asas de anjo.

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