A Arrábida oferece uma mão cheia de postais clássicos de Portugal à beira-mar. Até por isso os seus encantos se banalizaram, passando a conviver com pedreiras, cimenteiras e urbanizações deploráveis. Para além dos clichés, no entanto, há um ramalhete de lugares magníficos desconhecidos - ou quase -, ao longo dos 30 quilómetros de extensão da cadeia montanhosa da Península de Setúbal, em particular nos seus 10.800 hectares de paisagem protegida (desde 1967).
São sítios fantásticos, mas praticamente inacessíveis. Ou melhor, são fantásticos na mesma medida em que permanecem inacessíveis para toda a gente, menos para um pequeno escol de especialistas.
Desse clube faz parte a meia dúzia de espeleologistas que nesta altura do ano troca a rotina da investigação pelo papel de guias ao serviço do programa de actividades da Ciência Viva no Verão - sendo a Sociedade Portuguesa de Espeleologia responsável pela realização destes passeios. Se para os fãs da geologia é o equivalente a uma aula de campo, já para os amantes do turismo alternativo é o fruto mais cobiçado - a revelação de recantos especiais de um Portugal ainda selvagem.
À beira do abismo
O programa chama-se "As grutas que escondem as águas subterrâneas da Serra da Arrábida" e ocupa um dia inteiro, dividido entre o Cabo Espichel e as Terras do Risco. Este Verão, em particular na data de Agosto em que nos inscrevemos, a saída é organizada pelo espeleólogo Pedro Marote e duas assistentes, que marcam encontro com os participantes no Castelo de Sesimbra. Um posto altaneiro, outrora estratégico em termos militares, hoje ainda perfeito para uma aula da geologia e da geomorfologia do território. Com a ajuda de cartas geológicas multicolores e algum jargão técnico (palavrões tais que monoclinais, anticlinais, sinclinais e socos), rebobinam a extraordinária luta de titãs empedernidos, aqui ocorrida há muitos milhões de anos, envolvendo falhas e dobras, empurrões e compressões.
No essencial, a cadeia é formada por rochas carbonatadas, calcárias e margas (calcários com 35 a 60 por cento de argilas), datadas do Jurássico (200-146 milhões de anos) e do Cretácico (146-65 milhões), dois dos três períodos da era Mesozóica. A região é particularmente rica do ponto de vista geológico, em particular no capítulo de estruturas cársicas da família das grutas (recenseadas cerca de uma centena), e é justamente para dar a conhecer as mais notáveis que este programa se justifica. Envolve um manual abreviado de geologia que, no entanto, pouco ou nada prepara os excursionistas para o rol de provas e emoções fortes que o esperam.
A paragem número dois é no Cabo Espichel, ou melhor, no respectivo farol, que a cerca de 150 metros acima do mar culmina numa extensa plataforma litoral. Aí arranca um trilho rochoso, que ziguezagueia na arriba ventosa e descarnada - ou seja, desprotegida e sem apoios -, até ao Focinho do Cabo, cem metros mais abaixo. Descer não é fácil, subir ainda é mais complicado, alguns participantes ficam logo pelo caminho. Mas o verdadeiro teste (ao medo, às vertigens) aguarda quem chega lá abaixo. Do Focinho do Cabo arranca um "corrimão" de 15 metros junto à arriba, que se percorre na ponta do precipício, com a ajuda de material de escalada, até à chamada Lapa das Pombas.
Do equipamento faz parte a corda de segurança comum, que aguenta até dois mil quilos, mais cinto de segurança, arreatas e mosquetões individuais, fornecidos pela organização. Tudo é feito sem sobressaltos, mas nem por isso deixa de causar calafrios quando se percebe que se tem de contornar a arriba por fora, sobre um parapeito estreito e escorregadio, à beira do abismo. O prémio é uma visão perturbadora: uma bocarra de pedra dentada de uns cinco por oito metros, a servir de balcão para a cúpula de uma gruta vertical de 50 metros de altura, com as ondas a bater lá no fundo. Também se vislumbra a entrada da vizinha Gruta dos Segredos e, no local, os especialistas chamam a atenção para as rochas arredondadas e outros indícios de que o mar outrora chegou a estas alturas. É, porém, difícil prestar muita atenção, quando se percebe que a única maneira de regressar a "terra firme" é voltar pelo mesmo caminho.
Teste de resistência, Um lugar selvagem
Depois, finalmente, um episódio de descontracção com o almoço-cada-um-tráz-o-seu, no muito pitoresco parque de merendas do Alambre. A próxima e última paragem é em Terras do Risco, meia dúzia de quilómetros antes da descida para o Portinho. Vamos à procura de sumidouros, espécie de poços naturais, por onde se escoam as águas da depressão cavada nestas terras. Na prática: caminhamos por um descampado de terra mole, tipicamente argilosa até encontrarmos um sortido de fendas de diâmetro diverso, actualmente sem água nem fundo à vista.
Aqui, as explicações científicas são mais interessantes do que as vistas. Em zonas deprimidas, o calcário é corroído pelas águas, dando lugar à chamada "terra rossa" ou argilas de descalcificação. A sua impermeabilidade faz com que se acumulem grandes extensões de água nas depressões, o que propicia a formação de sumidouros nos sítios onde a rocha aflora. Estes são, portanto, como galerias de escoamento naturais e a grande questão reside em saber onde é que ela vai parar -, que é como quem diz, onde se encontram os aquíferos de águas doce subterrânea da Arrábida.
Marcadores florescentes colocados nos sumidouros em causa, em 2005, assomaram uma semana depois e em primeiro lugar na chamada Lapa dos Morcegos. É justamente para lá que se encaminha a excursão, atravessando a fabulosa Serra do Risco, também conhecida por Onda da Arrábida (Sebastião da Gama), arredondada para o lado da terra e abrupta para sul. O itinerário processa-se ao longo da ribeira, seca nesta altura do ano, implicando ultrapassar declives por vezes de alturas consideráveis e densas manchas de floresta mediterrânica, que fustigam a mínima mancha de pele desnuda. Voltamos ao mesmo: se para baixo é o desafio do desconhecido, para cima este percurso sempre meio improvisado constitui um verdadeiro teste de resistência.
O ponto de chegada no outro lado do Risco é outro balcão sobre o precipício, desta vez mais dramático, uma vez que se eleva a uns bons 70 metros de altura sobre o mar. Lá em baixo desenha-se a entrada da Gruta dos Morcegos, assim chamada porque é um dos mais importantes abrigos de morcegos em Portugal. Os morcegos gostam de passar o Inverno em grutas frias, o que facilita o seu metabolismo, de modo que esta é a mesma colónia que na metade mais quente do ano fica nas grutas de Alviela. De momento não estão em casa, mas em compensação avistam-se numerosos corvos marinhos, esvoaçando sobre os rochedos, disseminados à entrada da gruta.
Eles surpreendem quem não trouxe binóculos, já que os corvos marinhos são aves de porte razoável e a esta distância mais parecem pombos. Também significa que funcionam como um excelente contraponto para a maior escarpa calcária litoral da Europa - 380 metros do alto até à base da falésia, praticamente na vertical. A única maneira de entrar na gruta com mais de cem metros de comprimento é praticando escalada ou chegando por mar, mas nem uma coisa nem outra estão ao alcance da maioria dos mortais.
Outra maneira de dizer, que este recanto da Serra do Risco, tal como antes as profundezas do Espichel, oferece essa sensação única de mergulho numa natureza remota, ainda primeva ou por humanizar. Que essa fruição do selvagem, do mágico ou de pré-científico, seja possível graças a uma excursão científica especializada na genealogia da terra é uma segura ironia. Uma dessas ironias só possíveis numa época em que a ciência sonha em sair de si e ganhar asas lúdicas.
Ciência Viva no Verão
Programa: "As grutas que escondem as águas subterrâneas da Serra da Arrábida"
Próximas visitas: 8 e 9 de Setembro, 10h
Inscrições: actividade gratuita, inscrição obrigatória, até 20 participantes (maiores de 8 anos). Com lista de espera, mas há sempre desistências.
Local de encontro: Castelo de Sesimbra
Requisitos: viatura própria, agasalhos, botas de campo, chapéu, farnel, água e protector solar.
Informações (visita): www.cienciaviva.pt
Informações (geologia): www.sesimbra.com | www.spe.pt | www.icnf.pt | run.unl.pt