Fugas - viagens

  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar
  • Helena Colaço Salazar

Alcaide, a aldeia dos cogumelos

Por Alexandra Prado Coelho

Durante três dias, na aldeia de Alcaide, perto do Fundão, os fungos foram os reis da festa. Entre um passeio micológico e um mega-almoço de arroz de míscaros, milhares de pessoas aprenderam a distinguir os venenosos dos “excelentes comestíveis”. E comeram os últimos.

Combinamos encontro com os amigos debaixo do cogumelo gigante, na praça central de Alcaide. Que melhor sítio poderíamos escolher, se foi por causa dos cogumelos que viemos até esta aldeia do concelho do Fundão?

Havia, é certo, muitos outros cogumelos possíveis, por exemplo, o guarda-chuva vermelho com pintas brancas à porta de um dos muitos bares improvisados para o Míscaros - Festival do Cogumelo. Mas o da praça central pareceu-nos o maior, e foi daí que partimos, atrás do engenheiro Gravito Henriques, técnico da Direcção-Geral de Agricultura e Pescas, para um passeio micológico às dez da manhã de domingo (o festival decorreu entre 16 e 18 deste mês).

“Ai, tanta gente”, não se cansa de dizer Gravito Henriques, enquanto uma pequena multidão se junta no centro de Alcaide. Muitos trazem cestos de verga e pequenas faquinhas, na esperança de voltarem carregados de cogumelos. Mas Gravito Henriques baixa as expectativas. “Este não é um passeio para apanharmos cogumelos. É para os conhecermos.”

A multidão arranca, olhos cravados no chão a ver quem é o primeiro a descobrir um cogumelo. Alguém grita “Está aqui um!”, e todos se precipitam para tentar ver. É um lepista nuda. O nosso guia aproveita para explicar que os cogumelos se dividem em três grupos conforme a forma como se alimentam: consumindo matéria orgânica morta (são os sapróbios, e só estes podem ser cultivados), sendo parasitas (ou seja, consumindo outros seres vivos), ou estabelecendo relações de simbiose com algumas plantas (os chamados micorrízicos). “O lepista nuda só pode ser consumido depois de cozinhado”, avisa.

Mas há um outro conceito que Gravito Henriques quer fazer passar porque é essencial a quem se interessa por cogumelos. “Quando apanhamos o cogumelo estamos a apanhar a azeitona da oliveira, ou seja, estamos a apanhar apenas a frutificação.” Por baixo dos nossos pés, sob a terra, está o micélio, os filamentos do fungo que são o equivalente à árvore que dá o fruto. Daí que seja preciso um cuidado especial para não destruir o micélio quando se apanha um cogumelo.

Alguém localiza outro cogumelo, parasita de uma cerejeira. “Pode ser consumido, mas não tem grande interesse.” Mas, sendo parasita, se o encontrarmos o melhor a fazer é retirá-lo para proteger a árvore, aconselha o engenheiro.

Seguimos passeio, saímos da estrada e avançamos por entre as árvores. São cada vez mais os cogumelos. Gravito pega noutro. “Este é uma boletácea. Não tem grande interesse gastronómico, mas, na falta de melhor, marcha.” Aparece finalmente um boleto. “Este é um excelente comestível. A carne é branca e não muda de cor. Tem alto valor gastronómico e comercial.” E depois um lactarius deliciosus. “Outro excelente comestível. Há quantidades exorbitantes dele nos pinhais. Reparem: segrega um látex cor-de-laranja e vira verde passadas horas. Isso não tem problema nenhum, é só oxidação.”

Mais tarde, já de regresso a Alcaide, Gravito Henriques vai fazer uma sessão para analisar os cogumelos colhidos durante o passeio, e é aí que aparece o temível amanita falóide. Tem um ar inocente, mas “dois destes matam uma família em pouco tempo”. É conveniente nunca estragar o pé quando se apanha um cogumelo porque é no pé que está muita da informação que permite identificá-lo. E se alguém encontra um amanita falóide vai querer identificá-lo sem deixar margem para dúvidas. E, já agora, cuidado também com os cogumelos das histórias infantis — os vermelhos de pintas brancas chamam-se amanita muscaria e são tóxicos.

Os cestos voltam do passeio micológico meio vazios, mas os caminhantes vêm cheios de apetite e em pouco tempo forma-se uma fila para o mega-almoço de arroz de míscaros, servido pela Escola de Hotelaria e Turismo do Fundão, para duas mil pessoas.


15 milhões por ano

Quem não quisesse ficar na fila podia optar por uma das dezenas de tasquinhas que se espalhavam pelas ruas de Alcaide, em casas particulares e espaços improvisados. O grupo de amigos do Druida instalou-se este ano numa casa de paredes toscas de pedra e tecto de traves de madeira, que encheram de fardos de palha a fazer de bancos. Aí servem licor celta e cogumelos doces, mesmo ao lado de outro espaço ocupado pelo clube motard da zona.

Em antigas tabernas e casas particulares, a população de Alcaide inventa mil e uma formas de servir cogumelos e outras especialidades, abre as portas, monta mesas, improvisa. As noites de sexta e sábado foram de festa até altas horas, e de alguma chuva, mas no domingo o sol bate nas folhas vermelhas e douradas das árvores — o que, convenhamos, ajudou a que houvesse tanta gente no passeio micológico — e anima os noctívagos a sair da cama. Aliás, com os bombos da Barroca, de Alcongosta e da Capinha e as Adufeiras de Penha Garcia a desfilar pelas ruas não deve ser fácil conciliar o sono, por muito grande que tenha sido a folia da véspera. 

“Esta é uma festa que vem de fora para dentro, é baseada na alma da aldeia, envolve toda a gente”, diz, sorridente, o presidente da Câmara do Fundão, Paulo Alexandre Bernardo Fernandes. A aposta nos cogumelos começou há uns quatro ou cinco anos e está a crescer. “Esta é uma das zonas de maior produção de cogumelos silvestres do país”, diz-nos, enquanto, atrás de nós, na cooking arena, o chef João Hipólito prepara tudo para fazer uma demonstração de como se cozinham cogumelos. “A serra da Gardunha é conhecida como um santuário de cogumelos silvestres, temos aqui mais de 150 espécies, e desde sempre houve a tradição da apanha de cogumelos como suporte à economia local”, sublinha o autarca. 

A estratégia da Câmara (que já tinha a experiência de lançar a marca Cereja do Fundão) é “pegar nos produtos endógenos”,  naquilo que “diferencia” a região, e fazer um programa de animação ligado aos produtos locais. Para os cogumelos escolheu Alcaide, onde a população não deverá ultrapassar as 500 pessoas, mas que tem um grupo de jovens dinâmico e um grande entusiasmo pelo festival Míscaros, que vai já no quarto ano, e a transforma por três dias numa autêntica aldeia dos Estrumpfes.

O presidente da Câmara tem mais planos. “Estamos a mobilizar as pessoas, e investidores, para criar um centro de recolha de cogumelos, baseado em Alcaide”, explica, entusiasmado. O centro seria uma forma de contornar um problema que existe actualmente, e que desvaloriza o produto. “Os cogumelos desta região valem qualquer coisa como 15 milhões de euros por ano, em valor comercial. Mas as pessoas recolhem-nos na natureza de forma pouco organizada e vendem-no sem grande valor acrescentado.”

Isto faz com que os cogumelos que “aqui se vendem a cinco ou seis euros o quilo custem a um chef de cozinha qualquer coisa como 30 euros, e cheguem a Itália a 60 euros”. Um centro de recolha, que poderia funcionar como cooperativa, defende o autarca, seria “uma plataforma de comercialização” que substituiria os intermediários. “A recolha organizada é importantíssima para a economia local. Devia haver pontos de recolha aqui, mas também em Trás-os-Montes, no Alentejo. É também uma forma de garantir a qualidade, porque quando se trata de cogumelos a questão da segurança alimentar é essencial.”

Do actual negócio de 15 milhões de euros por ano, “uma fatia é comercializada localmente, mas mais de 70 ou 80% vão para Espanha”. Os cogumelos são comprados em Portugal “a um valor muito mais baixo para em Espanha poderem ser valorizados e colocados no mercado com um valor muito mais alto, sendo que muitas vezes voltam a ser vendidos em Portugal” já embalados ou transformados.

Para mudar esta situação, e valorizar os cogumelos (a ideia de uma marca como a das cerejas não vai, para já, avançar), a Câmara do Fundão quer ainda fazer com que os cogumelos selvagens “entrem no receituário dos chefs de cozinha”, e vai apoiar a criação de um restaurante, em Alcaide, especializado em cogumelos.

A avaliar pelo entusiasmo dos apanhadores aprendizes que no domingo passado seguiram Gravito Henriques, virando montes de folhas e observando atentamente a base de cada árvore, e lançando exclamações de alegria de cada vez que descobriam uma cabecinha branca, castanha ou avermelhada a despontar no chão, Alcaide tem condições para vir a ser uma aldeia dos cogumelos mais do que três dias por ano. 

--%>