O acontecimento mais memorável do cruzeiro é sintomático dessa cândida espontaneidade e tem a data do primeiro de dois dias de navegação sem escalas nos mares da China. De manhã e ao fim-do-dia, um casal de jamaicanos oriundos de Montego Bay é chamado a actuar junto da piscina ao ar livre. Ela canta, ele toca teclas e programa ritmos, alternando êxitos de r&b com clássicos da terra deles. Têm bom gosto e a cantora tem uma voz prodigiosa, coisa certamente rara em cruzeiros. Neste fim de dia estão tão inspirados que até conseguem chamar a si meia dúzia de senhoras chinesas, capazes de arriscarem uns tímidos passos de dança. Já um casal do Botswana não se acanha e conquista o centro da pista improvisada, servindo de catalisador para um verdadeiro baile de chineses na terceira idade, desinibidos ao ponto de dançarem em fato de banho.
Chocolates e peixe cru
Ao terceiro dia o barco volta a atracar, desta vez na ilha de Okinawa, no Japão. Okinawa é uma espécie de Madeira do Japão, uma estância de turismo balnear mais conhecida pelas praias paradisíacas do arquipélago de ilhotas em volta, sobretudo frequentada por japoneses e turistas das vizinhanças. Onde o barco lança amarras por meio dia é, no entanto, na capital Naha, onde o que há para ver é o castelo de Shurijo e a avenida de compras de Kokusai, com uma eventual pausa de almoço no mercado de Makishi.
De tudo o resto que é a extensa cidade de Naha a maior parte dos guias pouco ou nada diz e aparentemente com razão: a cidade é um aglomerado de prédios de todo o tamanho e feitio, quase todos edifícios em betão sem respeito por estilo algum. No alto deste puzzle caprichoso serpenteia um monocarril, onde se viaja como num cenário de jogo de computador tridimensional, o que constitui porventura a mais excitante atracção da cidade. De resto, o melhor de Naha são os japoneses, todos muito sorridentes, estilosos e bem vestidos, uma sofisticação que se torna mais evidente para quem vem da China.
Quanto ao que há para ver em Naha: o castelo no alto da cidade é um complexo de grossas muralhas, portas esculturais e pavilhões majestosos que testemunham a história de um reino a meio caminho entre a China e o Japão. Shuirijo parece um museu e não é por acaso. Foi tudo arrasado na Segunda Grande Guerra e hoje o que se visita é uma completa reconstituição do castelo nos seus dias de glória. Kokusai, por sua vez, é isto: 1,6 quilómetros de lojas repletas de doces e quinquilharia, sobretudo frequentadas por adolescentes de roupas “flashantes”. É um cenário urbano francamente exótico, mais giro de ver que para comprar. Mais interessante, porém, resulta visitar o contíguo mercado coberto de Makishi, repleto de peixes vivos e intrigantes, depois servidos nos muitos restaurantes tipo cantina de mesas corridas, que se sucedem no piso superior.
Memórias da China colonial
Entretenimento é o que não falta num paquete como o Legend, que oferece desde aulas de jogos de casino a uma parede de escalada na popa do décimo convés, passando por visitas guiadas aos bastidores do navio e gelados semifrios ao entardecer. Mas quando se passam dois dias inteiros em alto mar às tantas já se conhecem os cantos à casa e o que cada um passa a procurar é o que cada um usualmente mais gosta de fazer. O que no caso dos chineses significa passar horas a fotografarem-se mutuamente (depois os japoneses é que têm a fama), a jogar pingue-pongue e a bater cartas a dinheiro ou a feijões. O tom geral deste segundo dia de alto mar é certamente muito mais relaxado e a maioria dos passageiros acaba por se render à velocidade de cruzeiro, aproveitando para passar pelas brasas nas espreguiçadeiras espalhadas pelos decks superiores do navio.