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Tower Bridge, Londres, 2012

Tower Bridge, Londres, 2012 Miguel Medina/Reuters

Astérix: E a Bretanha nunca mais foi a mesma

Por Raquel Ribeiro

Cerveja quente? Comida cozida com hortelã? Carros que circulam ao contrário? O legado do império romano na ilha britânica vai muito além do que Astérix viu e das ruínas das muralhas. Londres foi fundada por Roma. Milénios depois, e à sua semelhança, tornou-se a capital de um grande império.

[Astérix à Volta do Mundo: "Astérix entre os Bretões"]


Se o leitor atravessar hoje a London Bridge, de sul para norte, talvez não se aperceba que há mais de dois mil anos Júlio César atravessava o Tamisa precisamente no mesmo lugar. Londres, ou Londinium, foi fundada no ano de 43 (quase 100 anos depois de César lá passar), e no mesmo local onde hoje está a London Bridge estava a primeira ponte romana da futura capital britânica.

César, imperador romano, chegou à ilha da Bretanha no Verão de 55 a.C.. Primeiro numa “visita” de reconhecimento, seguindo-se uma invasão um ano depois, com mais de 25 mil tropas legionárias. Mas a primeira estadia dos romanos na ilha não durou muito tempo e, apesar das sucessivas batalhas com os “bárbaros” bretões, as zonas conquistadas não passaram da área de Kent, no Sul, junto ao Mare Britannicum.

Parece que César e as suas tropas se depararam com uma força com que não contavam: o apoio dos gauleses e, em particular, dos guerreiros Astérix e Obélix, que já tinham dado muitas dores de cabeça aos romanos defendendo a sua aldeia no norte da Gália, onde construíram um pequeno foco de resistência às investidas imperialistas de Roma.

Astérix e Obélix chegam, então, à Bretanha sozinhos, sem a sua entourage gaulesa, para ajudar um primo afastado de Astérix, Jolitorax, da tribo dos Cambridge, conhecidos como excelentes remadores e resistentes ferozes à invasão romana. Jolitorax sabia que naquela pequena aldeia no Norte da Gália reinava a paz devido a uma incrível poção mágica que o velho druida Panoramix preparara: “A poção que confere uma força sobre-humana a quem a bebe.” A mesma força de que os bretões precisavam agora para lutar contra o cruel exército de César.

A cidade de Londres ainda não existia. A norte do Tamisa, os bretões eram comandados por Cassivellaunos, cujo nome proto-celta vinha de kaddi (paixão, amor ou “cabelo comprido”) e wenamon (líder e soberano). César menciona Cassivellaunos no seu diário de guerra, Comentário sobre as Guerras na Gália, e pinta-o como um cruel bretão que, apesar de representar várias tribos a norte do rio Tamisa, liderou guerras constantes com tribos mais pequenas que rapidamente traíram o seu líder e se renderam a César, permitindo que aos romanos cruzassem o rio.

Na verdade, Cassivellaunos não era um cruel bretão. O seu exército era simplesmente (como dizê-lo?) britânico: parava todos os dias às cinco da tarde para “beber água quente”, às vezes com uma “pinguinha de leite”; trabalhava apenas de cinco em cinco dias, parando dois, porque era “fim-de-semana”. Estes costumes “prejudicavam eficácia de combate” dos bretões. Os romanos não respeitaram as regras e avançaram sem piedade.


Tudo ao contrário

Apesar de ser Verão, o exército de César deparou-se com o já “clássico” clima britânico: chuva e nevoeiro. Um nevoeiro súbito que submerge toda a cidade numa espécie de penumbra, ideal para que os bretões pudessem organizar a sua resistência, com Astérix e Obélix, e assim passar invisíveis diante dos romanos.

A travessia de Calais (Portus Itus) para Dover (Dubris) era naquela altura, como ainda hoje, difícil. Apesar de serem apenas 50 quilómetros, no canal o mar bate picado e as ondas rebentam, por vezes, contra as barcaças mais frágeis com violência. Naufrágios eram comuns. Talvez por isso, Obélix propusesse um túnel: “Sabes o que vinha a calhar, Astérix? Um túnel que ligasse a Gália à Bretanha. Assim, viajava-se sem chuva nem nevoeiro.” Parece que já desde antes de Cristo que os bretões andavam a pensar nisso, apesar de o túnel só ter sido de facto inaugurado em 1994.

Chegar de Paris no Eurostar à estação de St. Pancras é “aterrar” ao fim de duas horas e vinte e cinco minutos (pontualidade britânica, please) numa das mais belas estações do mundo. Entre a estação de King’s Cross e a British Library, St. Pancras é um edifício vitoriano (inaugurado em 1868) saído de uma Londres mergulhada em nevoeiro, quase neo-gótico, medonho e grandioso, que esteve para ser demolido nos anos 60 do século passado.

Ainda bem que não, porque hoje, além de servir de lounge do Eurostar, com cafés e delicatessens de inspiração “gaulesa” – deliciosos queijos que chegam (de comboio?) do lado de lá da Mancha, vinhos Côte du Rhône, Burgundy ou Beaujolais e croissants quentinhos que parecem mesmo saídos de Paris (ou de Bruxelas) da cadeia Le Pain Quotidien, que nos últimos anos invadiu Londres — St. Pancras tem também um dos mais luxuosos hotéis de Londres, o St. Pancras Renaissance Hotel, da cadeia Marriott, cuja renovação custou mais de 200 milhões de libras.

Em St. Pancras, há ladies de boina e messieurs de sapatos primorosamente engraxados. Em muitos lugares, fala-se francês como se estivéssemos, de facto, na “Europa”, e chegar a esta Londres é chegar finalmente “à civilização” como só os “gauleses” a sabem exportar.

Mas cuidado ao atravessar a rua! É que cruzar a porta da estação é deparar-se com o trânsito que circula “fora de mão”. Na verdade, já Astérix e Obélix tinham notado que muitas coisas na Bretanha eram “ao contrário”. Como as medidas, por exemplo: “Os romanos medem a distância em passos e nós em pés. São precisos seis pés para dar um passo”, explica Jolitorax. Obélix, perplexo, suspira “estes bretões são loucos!”. Como bons bretões, os adjectivos também vêm antes dos verbos. Obélix não entende por que dizem “rica boa ideia” ou “uma romana patrulha!” ou ainda a “Londinium Torre” – a famosa Torre de Londres, construída apenas em 1078, mas cujo território pertencia à cidade romana de Londinium.


Londres romana

A fundação da cidade que, no futuro, seria capital do império britânico (à semelhança de Roma, talvez o maior império da história ocidental depois do romano) dá-se apenas no ano de 43. A Londres romana estendia-se entre a margem norte do Tamisa, diante da London Bridge, até Bishopsgate, a avenida que separa o centro de East London, num triângulo demarcado por Fleet Street e pela Catedral de St. Paul (a oeste), a estação de Liverpool Street a norte e, a este, Whitechapel e Aldgate.

Vestígios da “romana herança” são ainda visíveis em várias partes de Londres. Como por exemplo o grandioso anfiteatro, construído no ano 70, em Guildhall, que hoje ocupa um espaço subterrâneo de que “sobram” apenas ruínas da zona onde os romanos guardavam os leões — que atacariam os escravos na arena do anfiteatro. Parece que os espectáculos eram populares porque se sabe que o anfiteatro sofreu uma renovação no ano 200 para albergar 6 mil pessoas (na época, viviam cerca de 30 mil habitantes em Londinium). Uma vez por mês, o curador do Roman Amphitheatre de Londres faz uma visita guiada ao sítio. Como este pertence à Guildhall Art Gallery, a visita subterrânea está incluída no bilhete.

O Templo de Mitras (mitraísmo era uma forma de religião popular entre os soldados romanos) é um dos mais importantes legados romanos em Londres. Construído no século II, no auge do Império romano do Ocidente, foi descoberto durante uma construção perto de Walbrook, nas traseiras da Catedral de St. Paul. Os artefactos descobertos durante as escavações encontram-se no Museu de Londres.

Com cerca de quatro hectares (o equivalente a quatro campos de futebol), o Forte Romano foi construído em 120 para albergar o exército da cidade mais importante do império romano na Bretanha. Vestígios do Forte podem ainda ser vistos em Noble Street e outras secções podem ser encontradas num parque de estacionamento, subterrâneo, nas imediações.

Apesar da resistência das tribos bretãs, a influência romana em toda a ilha da Bretanha foi enorme. Não admira, portanto, que se tenha escolhido a peça Julius Caesar para a inauguração do Globe Theatre, o famoso teatro de William Shakespeare, na margem sul do Tamisa, em 1599. Da plateia do Globe vislumbrava-se, do outro lado do rio, a “torre de César”, como Ricardo II (ou Shakespeare) se referia à Torre de Londres.

Para fazer a viagem de reconhecimento do legado romano deve visitar-se o Museu Britânico e o Museu de Londres. Ambos têm colecções impressionantes da presença romana nas ilhas britânicas, e, sobretudo o Museu de Londres (um museu bastante interactivo, com vídeos das escavações, mas também simulações digitais sobre a vida no tempo dos romanos), tem no seu jardim uma ruína do século XIII construída sobre restos da muralha deixada pelos romanos mil anos antes.

Se tiver tempo para viajar para lá de Londres, verá que a influência romana na Grã-Bretanha pode ser comprovada em inúmeros sítios, como a imponente muralha do imperador Adriano, fortificação de que ainda se mantêm grandes secções e que divide a Inglaterra da Escócia, hoje Património da Humanidade pela UNESCO. A sua construção começou em 122, no século II, e foi concluída quatro anos depois. Era a mais extensa fortificação deste género de todo o império: 118 quilómetros em madeira, pedra e turfa com mais de quatro metros de altura e dois de largura, por onde se estendia uma estrada que cortava a ilha de Este a Oeste. Os banhos reais de Bath também são de origem romana. Inicialmente construídos como parte da cidade Aqua Sulis, no ano de 44, são um enorme e luxuoso complexo de piscinas e lagos com águas medicinais visitados por gente nobre de todo o império. Hoje, Bath é conhecido pelo seu belíssimo spa.


Ainda há cerveja quente?

Porque todas as estradas vão dar a Roma, é talvez chegado o tempo de descanso. Nem Astérix e Obélix deixaram de se divertir com o néctar dos deuses, inspirados talvez por Baco, o deus romano da folia e da boémia. Ficaram obviamente chocados quando Jolitorax lhes serviu cerveja… quente. “Não estão suficiente mornas?”, perguntou o bretão. “Posso mandá-las aquecer.”

Já não é bem assim nas Ilhas Britânicas. Uma lager quer-se fresquinha e os ingleses sabem como fazê-la — é provável que a cerveja se mantenha mais fresca se pedir uma half pint (28 cl) do que uma pint (50 cl). No fim de uma noitada de sexta ou sábado, madrugada fora, talvez seja difícil encontrar cerveja no barril, quanto mais fresca. O “problema” continuam a ser as ales: para fazerem justiça à sua textura frutada, ao seu aspecto turvo e ruivo, querem-se mais quentes do que as lager, porque são mais pesadas. São mais caras, mas valem a pena. Bebem-se maravilhosamente sós ou acompanhadas, sobretudo no Inverno, ou naqueles domingos frios em que a chuva bate nas vidraças do pub – domingo é dia de pub e futebol (ou râguebi) em família. Depois disso, nunca mais vai desejar uma “loira fresquinha”. Talvez só no Verão, naqueles domingos frios em que a chuva…

Cervejas artesanais estão a regressar em força ao Reino Unido e, curiosamente, alguns dos melhores pubs que as servem são em East London, ou seja, nos passos de Astérix e Obélix (e dos romanos). A Time Out London recomendava recentemente uma série de “boutique pubs”, como Mason & Taylor em Shoreditch, The Euston Tap (ali mesmo ao lado de St. Pancras), ou a Craft Beer Company em Farringdon. Neste último, aberto em 2011, há 37 cervejas de barril, 16 das quais ales envelhecidas em barris de carvalho de produtores independentes britânicos, mais 300 tipos de cervejas engarrafadas e ainda lagers e ales importadas dos EUA ou da Bélgica. Será que a temperatura ainda é assim tão mais importante do que o sabor?

O mesmo se pode dizer da comida. Longe vão os tempos em que se dizia que os ingleses não sabiam cozinhar: javali cozido com molho de hortelã? “Pobre animal”, dizia Obélix. Na última década, o Reino Unido assistiu a uma verdadeira revolução culinária. E, hoje, se pensar em chefs populares internacionais com programas de televisão, é bem provável que Jamie Oliver, Gordon Ramsay ou Nigella Lawson sejam nomes reconhecíveis para aqueles que há uns anos não apostariam sequer que Londres podia ser destino de foodies.

Mas é: até a editora britânica Penguin Random House lançou recentemente o site Happy Foodie, onde partilha diariamente o melhor das receitas dos seus chefs com livros publicados. E se quiser ainda manter-se pela zona “romana” da capital do Reino Unido é onde vai encontrar, além das habituais cadeias de Jamie’s Italian (se quiser manter-se fiel ao chef britânico), o Viajante, restaurante do português Nuno Mendes que tem uma estrela Michelin.

Depois de comer e beber, o melhor é continuar a caminhar pelas “romanas estradas” do império: vá a Abbey Road ver onde os Beatles se deixaram fotografar na famosa passadeira para o seu 12.º álbum em 1969. Nada a ver com romanos: são mesmo bretões de melenas, vindos de Liverpool, mas que para Astérix e Obélix, perante a histeria desalmada das suas fãs, pode ser um bom exemplo a seguir lá na Gália pelo bardo de serviço, o homem da harpa, Cacofonix.

Nota final

Em jeito de post scriptum, é importante chamar a atenção para um detalhe de Astérix entre os Bretões. É apenas um preciosismo: o chá não foi levado de França para a Bretanha, mas de Portugal. Foi Dona Catarina de Bragança, rainha consorte de Carlos II, da dinastia Stuart, que deixou aos britânicos a geleia de laranja (marmelade – não confundir com marmelada portuguesa), o uso de talheres à mesa e a “instituição” do “chá das 5”.

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