Numa prova de vinho do Porto já lá vão dez anos, David Lopes Ramos inspirou os aromas de um vintage e sentenciou: "Isto só poderia vir do Vesúvio." Para muitos, para a maioria até, as sensações que se conseguem num grande vinho ou numa criação gastronómica são fugazes manifestações sem história, sem memória ou sem cultura, como a que a imponente quinta duriense produziu ao longo de quase dois séculos; mas, para David Lopes Ramos, resumir a excelência de um tinto clássico ou a majestade de um leitão bairradino à experiência sensorial imediata tinha o óbice de reduzir a gastronomia e a enologia a artes efémeras. E a moda, como tudo o que é volátil, ostentatório e artificial, irritava-o. Para ele, a vida, os amigos, a família, a arte, o país ou a política ou eram resultado de factos e emoções profundas, ou não eram.
David Lopes Ramos morreu ontem, em Lisboa, aos 63 anos, e as notícias citam o falecimento de um dos mais consagrados críticos gastronómicos do jornalismo português. Mas limitar o seu legado ao que o tornou mais conhecido do público é redutor. E errado.
Ele não escreveu sobre comida ou sobre vinhos; ele deu um contributo decisivo para que a gastronomia ganhasse lugar no inventário do património cultural português, bateu-se no jornalismo pelo rigor, pelo dever e pela apologia da causa pública, exigiu na vida pessoal o desejo e a vocação da partilha e criou uma aura de disponibilidade que cativou diferentes gerações e o tornou admirado tanto pelos seus pares, como pelos que eram alvo da sua crítica nem sempre meiga.
Nascido em Pardilhó, na área da ria de Aveiro, em Janeiro de 1948, David Lopes Ramos manterá ao longo da sua vida memórias da pesca, da faina do moliço e, principalmente, histórias acumuladas da emigração para a América. Essa corrente migratória fez com que muitas famílias rompessem o ancestral ciclo de pobreza e pudessem enviar os filhos para o Porto ou para Coimbra, onde nos anos 60 ainda se traçava a linha de separação das classes sociais em Portugal. Carlos Campolargo, jurista e produtor de vinho da Bairrada, conheceu-o em Coimbra nessa época, embora não tanto pelos seus méritos de estudante, mais pela militância no PCP que então ambos professavam. "Era um homem da ria cheio de ideais de juventude, mas nessa altura destacava-se já pelos traços de personalidade que o distinguiriam no futuro", recorda Campolargo. "Uma pessoa de uma humanidade incrível", acrescenta.
Mais do que o estudo das leis, a passagem por Coimbra foi marcada pelo crescente envolvimento político nas diferentes frentes da oposição ao Estado Novo que vivia então os anos de ilusão da Primavera marcelista.
David Lopes Ramos envolve-se nas organizações estudantis, chegando ao secretariado do Conselho de Repúblicas, participa nos célebres congressos oposicionistas de Aveiro.
Em 1971 inicia-se no jornalismo com Uma lição de verticalidade e honestidade, que devia ser aproveitada pelos jovens críticos que acham que escrever sobre gastronomia é uma coisa fácil.
Rui Paula, chef colaborações na histórica revista Vértice, onde entrou pela mão do poeta e ensaísta Joaquim Namorado (1914-1986). O seu afastamento crescente dos estudos obrigam-no a cumprir o serviço militar. Destacado para os Açores, onde foi ajudante de Vasco Lourenço, assiste aí à queda do Estado Novo. Vasco Lourenço recorda uma conversa com David Lopes Ramos na noite de 24 de Abril de 1974: "Perguntei-lhe se sabia rezar, e ele estranhou a pergunta.