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De que departamento vem?
É a primeira e quase invariável pergunta que os da Martinica, na maior parte negros ou mulatos, fazem aos visitantes, que são quase todos brancos. A pergunta traz água no bico e de certa forma resume o dilema identitário da ilha, no centro do chamado Arco das Antilhas. Perguntar "De que departamento vem?" presume que o outro, o branco, o turista, é tantas vezes francês que já nem vale a pena perguntar. Depois, "De que departamento vem?" é uma interrogação, mas também a afirmação por parte do emissor de que ele (ou ela) é igualmente cidadão de um departamento francês. E que, por consequência, os da Martinica não são nem mais nem menos franceses que os do continente. Franceses serão por certo, mas não franceses de segunda.
Descoberta por Cristóvão Colombo em 1502, a Martinica tornou-se colónia francesa em 1632, no reinado de Luís XIII. Nunca mais voltou a mudar de mãos, tirando um par de breves invasões inglesas nos inícios do século XIX, de resto meio consentidas pelos colonos brancos, para evitar a fúria revolucionária e antiesclavagista que tomou de assalto a vizinha Guadalupe, na sequência da Revolução Francesa de 1789. Os escravos africanos, importados para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, acabaram por conquistar a liberdade em 1833 e a ilha conheceu depois convulsões sociais cíclicas, mas nunca um forte movimento independentista. Em vez disso, depois da Segunda Grande Guerra, os lideres de esquerda - nomeadamente Aimé Césaire (1913-2008), que dá nome ao Aeroporto e é invocado em todos os santuários da memória local - fizeram campanha em prol da dignificação departamental da sua ilha.
A Martinica goza do estatuto de Departamento e Região Ultramarina (DROM) desde 2003, mas recusou em referendo avançar no sentido de uma maior autonomia. Quer dizer que a capital Fort-de-France é tão francesa quanto Paris do ponto de vista político, que não exigem vistos nem se carimbam passaportes no aeroporto (mesmo que o turista peça!) e tudo o resto é como em França, desde o euro aos gendarmes, passando pela profusão de armazéns Carrefour e Conforama à entrada das maiores cidades. De resto, os habitantes da ilha comunicam entre si em francês, pelo menos tanto quanto em crioulo, e a verdade é que, apesar de toda a terrível história de escravatura, os franceses sempre foram mais brandos e favoreceram a Martinica, preferindo-a claramente às demais colónias das Índias Ocidentais.
Esta será a ilha mais francesa das Antilhas, mas não se confunde nem pouco nem mais ou menos com o continente. Cada vez mais sobressaindo sobre os usos e costumes estritamente europeus há uma cultura mestiça, que não é menos afirmativa e desenvolta do que a das vizinhas Cuba ou Jamaica. A diferença é que, em vez de legitimarem os seus valores num discurso de orgulho singular e independência, fazem pelo contrário a apologia da integração e mesmo da dependência da antiga potência colonial como uma espécie de compensação por danos causados. Talvez por isso, porque os laços foram esticando, mas nunca foram realmente quebrados, sente-se maior proximidade e até intimidade com quem vem de fora.