Fugas - Viagens

No Nordeste do Brasil o Carnaval tem frevo, maracatu e coco

Por Manuel Carvalho

Caboclos de lança, Zé Pereira, frevo, afoxé, maracatu de baque solto e de baque virado fazem parte de um triângulo cultural que se sintetizou em Pernambuco e se cristalizou no Carnaval de Olinda e Recife. Há meses que centenas de milhar de pessoas vêem e revêem passos e planos para cinco dias que rompem o quotidiano e justificam a vida. Com o hedonismo e a exuberância de outros carnavais, mas com uma cor luso-afro-brasileira que torna esta festa única.

Se um dia alguém lhe disser que há um lugar no mundo onde mais de um milhão de pessoas se mobiliza todos os anos para seguir durante horas, debaixo do calor dos trópicos, a imagem de um galo que pesa três toneladas e mede 27 metros de altura, não se espante. É verdade. Acontece no Recife sempre que é sábado véspera do Carnaval. Procurar explicações para semelhante fenómeno é tarefa ingrata, se não impossível. Não está em causa nenhum ritual místico, nenhuma devoção religiosa, nenhuma celebração étnica, nenhuma apologia a um ideal político, nenhuma celebração dos direitos dos animais. O Galo da Madrugada é um bloco de Carnaval e, seja no Recife ou na vizinha cidade de Olinda, os blocos de Carnaval são assuntos demasiado sérios para serem objecto de reflexão. Como tudo o que faz mexer o Carnaval no Brasil, a máquina é movida por uma explosiva combinação de hedonismo, cultura popular e, certamente, alguma cerveja.

No sábado dia 1, lá para as sete da manhã, a ponte Duarte Coelho, que atravessa o rio Capibaribe e liga duas das principais avenidas da cidade, já há-de estar meio colonizada. Uns serão os resistentes da grande festa de abertura do Carnaval do dia anterior, outros serão os prosélitos do Galo e, sim, haverá muitos milhares de turistas — o Galo da Madrugada foi um dos principais destinos do Carnaval de Recife, segundo o Instituto de Pesquisas Políticas, Económicas e Sociais. Coisa séria.

Quando o galo iniciar a sua romagem de dez horas pela cidade, entra-se no primeiro transe colectivo. Pelo meio da multidão estão anunciadas umas 30 orquestras de frevo e vários trios eléctricos. Para quem quiser convocar a imagem de uma procissão para conceber este devaneio, terá de lhe acrescentar o movimento da dança e o colorido de uma música frenética (frevo vem de ferver), tocada por metais, que se articula com 120 movimentos coreográficos. Um património imaterial da Humanidade protegido pela UNESCO desde 2006 exaltado por centenas de milhar de pessoas que seguem a rota do Galo.

Há meses que os habitantes do Recife e de Olinda não pensam noutra coisa. Há meses que ensaiam as coreografias dos blocos ou os ritmos das caixas, bombos, atabaques e agogôs, alfaias, abês e outros instrumentos de percussão de feitio estranho e resultados espantosos. Para se chegar em forma ao Carnaval foi preciso encomendar e testar os trajes e os disfarces. Para que nada falhe, os mais cautelosos trataram de combinar encontros algures numa esquina de uma cidade que, por cinco dias, mais do que duplica a sua população. Tiveram de escolher programas (o do Recife são umas 30 páginas), verificar as horas, preparar a logística para dias quentes e noites longas.

Nos finais de tarde de domingo do último mês era ver milhares de homens e mulheres de todas as idades, de todas as cores, do chique bairro da Boa Viagem ou do popular morro da Conceição, a rumarem ao centro histórico da capital do Pernambuco para se encontrarem com os seus blocos. Riam, num espírito contagiante, meio pueril meio malandro, como se em causa estivesse o sucesso não de uma semana, mas de toda a vida. Não fossem os toró (chuvas tropicais) e o tempo teria sido mais bem aproveitado. Mas bastava assistir a essa azáfama dos finais de semana para se ficar com uma ideia aproximada da paixão que a festa suscita. Chega até a ser estranho verificar como a entrega, o entusiasmo e euforia são vividos por uma procuradora, um jornalista ou um deputado federal. Pessoas que no quotidiano veríamos aprumadas, tornam-se subitamente mais livres, mais espontâneas, mais reais, talvez.

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