Fugas - restaurantes e bares

Sim, chef!

Por Miguel Pires

Observar e trabalhar não é a mesma coisa, já se sabe. O que o jornalista não sabia era qual a real diferença numa cozinha. Com esse sentido e com o propósito de entender melhor o que está por detrás de um prato, vestimos a farda, colocámos o avental e estivemos uma semana trabalhar no restaurante O Talho, em Lisboa.

Chega um novo pedido e ouve-se a voz do líder: “Entra comanda, são duas pessoas. Começa com croquetes e depois segue um magret asiático e um tártaro.” “Sim,chef”, responde a equipa de cozinha. É o meu segundo dia e ainda me custa dar a resposta da praxe. Sinto-me um jogador de futebol veterano a responder “sim,mister” a um treinador dez anos mais novo. O momento é de concentração. Já vão quase três horas de mise en place e vinte minutos de comandas ao almoço. 

Estou a acompanhar André Santos no garde manger – a secção de entradas e pratos frios. O cozinheiro mostra-me os ingredientes organizados em caixas de tamanhos diferentes, dispostos em cima da bancada e nos frigoríficos. Os elementos do bife tártaro e do ceviche de vitela estão numa prateleira, os do magret de pato asiático noutra e assim sucessivamente. A organização é essencial para que a cozinha responda a tempo e sem atropelos. Cada prato tem uma ficha técnica mas a hora do serviço não é tempo para consulta, pelo que há que ter tudo na memória. 

Num bom restaurante não há grande espaço para improvisos. A ideia é replicar diariamente os mesmos pratos como idealizados e definidos por quem os criou – ainda que n’O Talho esse não seja um objectivo obsessivo. Esta memorização parece uma missão impossível para quem, como eu, caiu ali de pára-quedas. Como se não bastasse, além da concentração para que o prato saia correcto, é necessário estar atento aos novos pedidos e a um ou outro processo que vai além da bancada dos frios (como acontece com os croquetes de cozido à portuguesa, que passam cerca de dois minutos pela fritadeira e outros tantos no forno). A cozinha está dividida em quatro secções: entradas e pratos frios (garde manger), quentes e fogão, pastelaria e copa. Normalmente o passe é feito num balcão que marca a fronteira entre a cozinha e a antecâmara para a sala. No entanto, no caso d’O Talho, esta parte está no interior da cozinha. 

É preciso então preparar um magret asiático. À boa maneira da cozinha do sudoeste deste continente, o prato frio do chef Kiko Martins leva uma infinidade de elementos, sendo um dos mais complexos do menu. Já vi e ajudei André a montá-lo duas ou três vezes e faltou sempre algo. Porém, desta vez estou confiante de que não me vou esquecer nada. Tiro do frigorífico uma caixa com ingredientes, as bisnagas dos molhos e uma porção de vermicelli (massa de arroz muito fina) previamente cozida que deito numa taça de metal. Junto-lhe o molho n’ó’c châm (à base de molho de peixe, sumo de lima e vinagre de arroz), coentros, hortelã, malagueta e misturo. Depois coloco tudo num prato fundo, acrescento um pouco mais de líquido, dois ou três amendoins e igual número de feijões de soja (endamame). Com uma pinça, junto uns fios de alga wakame e dois pedaços de ostra. O prato leva ainda umas micro-ovas de peixe voador, molho de soja, togarashi(pó japonês de sete especiarias) e... ah!, desta vez não me vou esquecer: tempura de cebola, previamente frita e mantida quente em cima do forno. Só tenho que lhe dar um choque térmico por um minuto para ficar bem crocante, trazê-la, colocá-la no topo do prato e voilà!, está pronto. 

Hum... acho que falta alguma coisa. Rodo o prato, olho para as caixas e para André, em busca de ajuda. Ele, de sobrolho ligeiramente levantado, mas com uma voz muito calma, diz-me: “O pato”. Observo, atónito, o conjunto e. não é que falta mesmo o magret de pato? (A sério? Um prato que se chama “magret de pato asiático” leva pato? Acorda, Miguel!). Com um sorriso amarelo no rosto, tiro do saco de vácuo o pedaço de peito do marreco, corto-o em fatias finas e ajeito-as debaixo da tempura e das ovas. Agora sim, está pronto a sair. 

A faca e a mão

O Talho abriu no início de 2013 e desde o começo que tem sido um sucesso. Trata-se de um restaurante com um talho, ou o contrário: “um talho com cozinha – dedicados ao conhecimento e aperfeiçoamento gastronómico da carne”, segundo Kiko Martins (ver perfil nestas páginas). Contudo, na parte de restauração não é uma steakhouse, mas sim um restaurante com um elemento (a carne) como base para explorar as cozinhas do mundo. De início, Kiko Martins e o seu sócio, e também chef, António Barros (ambos passaram pelo Eleven e, antes, pela escola de cozinha Cordon Bleu, em Paris) acharam que podiam funcionar dirigindo uma cozinha apenas com principiantes. No entanto, o sucesso foi repentino e rapidamente perceberam que o desgaste era brutal. Deste modo, para consolidar o projecto tornou-se necessário contratar alguns cozinheiros com experiência. Saber disso deixava-me mais descansado, quando desafiei Kiko Martins a deixar-me trabalhar uma semana na cozinha. Por um lado, não seria o primeiro rookie a passar por ali; por outro, teria uma série de profissionais prontos a auxiliar-me em caso de pânico. 

Na véspera comecei a ficar um pouco apreensivo. Será que aguento ficar 10 a 14 horas em pé, quando habitualmente passo uma boa parte do meu dia sentado? E se me corto ou queimo? O que devo calçar? Não quero uma atenção especial mas será que vão gritar comigo, como o Ramsay na televisão? “Ah ah ah, estás ansioso com o novo trabalho. Pareces os miúdos com o primeiro dia de escola”, dizia um amigo com quem partilhei os meus receios.

São 9h40 de uma quarta-feira de finais de Agosto e de pequeno-almoço tomado apresento-me ao serviço. Na cozinha sabem quem sou e ao que vou. Contudo, Kiko Martins diz-me, numa curta conversa, que deu indicações para que procedessem como habitual e que eu não gozaria de tratamento privilegiado. Acrescentou ainda que teria acesso a tudo o que se passa nos bastidores, “sem máscaras”. Às 10h já toda a equipa está nos preparativos para o almoço. A mise en place é fundamental no sucesso de uma cozinha e começo por ficar no garde manger. O responsável nesses dias, André Santos, tem pouco mais de metade da minha idade (24 anos), está n’O Talho há dois meses e já parece dominar a cena. Peço-lhe tarefas e ele, não muito convencido, passa-me uma enorme caixa cheia de folhas de alface. “São para arranjar.” Ripo a alface, tiro alguns caules mais duros e descarto as folhas velhas. De seguida preparo as folhas de couve lombarda que decoram os cestinhos de metal onde pousam os croquetes de cozido à portuguesa. 

À medida que lhe vou pedindo mais tarefas, ele toma-lhe o gosto. Sinto um certo ar perverso quando me dá uma quantidade generosa de pães pita e diz para fazercroutons. Não me parece uma tarefa complicada, não fosse o estado semicongelado dos pães e a faca não estar no seu melhor estado. A meio pressinto que vou ganhar bolhas na mão, graças ao mau estado da lâmina e à pega pouco ergonómica. Lembro-me da história do bailarino que não sabia dançar e que colocava as culpas nos sapatos. Porém, evito o queixume. Mas não a pergunta: “É mesmo para cortar todo aquele pão?”. “Sim”, diz André, com um ligeiro ar de satisfação no olhar, como quem acha que se livrou do estagiário. Volto à empreitada e ao objectivo de fazer um milhão de quadradinhos de pão para torrar. Aproxima-se a hora do almoço do pessoal e já não tenho muito tempo. Lia, a responsável de pastelaria, que trabalha na sua bancada, atrás de mim, empresta-me a sua faca e sigo então para bingo. Resumindo: prometo nunca mais na vida deixar um crouton no prato e juro que pedirei satisfações se vir, por estes dias, algum cliente desprezá-los. 

Porra, queima!

Ao almoço, Kiko Martins está no passe e puxa-me para o seu lado. É aqui que o chef principal de serviço gere a entrada e saída dos pedidos, faz o empratamento dos principais (quentes), conduz toda a cozinha e faz a ligação com a sala. É ele a voz de comando. Entra a comanda na pequena impressora da cozinha: “Prato, tártaro, burger bem e burger médio”, diz com firmeza, mas sem gritar. Resposta, a da praxe: “Sim, chef.”

O “prato” é o prato do dia (ou em rigor, o da semana): ravioli de rabo de boi e mandioca. Foram feitos no sábado e congelados (“Aguentam perfeitamente sem perder a qualidade”, diz o chef). Dinis, que está responsável pelo fogão, coloca três unidades numa frigideira e cozinha-os em manteiga noisette, um pouco de natas e de demi-glace (um misto entre caldo e molho de carne). À medida que vão aquecendo, vai regando com o próprio molho, num gesto rápido e contínuo. Quando termina, passa a frigideira para a bancada do chef (onde já estão também os preparativos para o hambúrguer). Kiko faz então o empratamento: coloca-os sobre uma pincelada de molho de salsa e joga em cima, sem grandes preciosismos, meias luas de tomate e folhas de agrião. Finaliza com o molho. 

Pelas 13h15 já saíram uns vinte pratos. O hambúrguer e o prato do dia (ambos a 9€, o preço mais baixo entre os principais do menu) são os mais vendidos e o sucesso deste último, o ravioli, deixa um intenso aroma a manteiga no ar. Durante a semana, ao almoço, os pedidos são menos variados, mas concentram-se num período mais curto – de uma hora, hora e meia - quando comparado com o jantar. “As duas bochas [bochechas de porco]?” “Estão a sair, chef.”

Até ao momento vou observando. Porém, rapidamente copio os gestos e os procedimentos do comandante. São 13h30, o ritmo aumenta. Há uma tensão latente, mas ninguém descarrila. Ainda confundo as guarnições do hambúrguer da semana com o d’O Talho, já para não falar as do borrego com os da bochecha de porco. Um deles leva um ovo a baixa temperatura. Os ovos foram pré-cozidos e aguardam em copos individuais. É preciso um. Cubro-o com água e levo-o ao micro-ondas a aquecer por 30 segundos. Ouvido o ‘plim’, deito-o na mão e deixo escorrer a água entre os dedos. A gema está mole, mas (à partida) não rebenta. É preciso deitá-lo com precisão na pequena cova aberta na farofa. Porra, queima! “Sim, mas depois habituas-te”, diz a voz de comando. Os empratamentos são cuidados mas não se perde tempo com perfeccionismos. Contudo, a exigência é grande. Por exemplo, as batatas são fritas ao momento de acordo com os pedidos e basta estarem mornas para irem parar ao lixo. “É a minha maior dor de cabeça”, diz Kiko. “Têm de ser quentes e estaladiças e ainda para mais a qualidade da batata varia muito ao longo do ano.” 

Começo a ganhar ritmo e a sentir-me um campeão por conseguir entrar na dança sem trocar (muito) as mãos. Contudo, são 14h15 e a cozinha entra em velocidade de cruzeiro. Mesmo na pastelaria, não há grande azáfama. Ao almoço há menos pedidos de sobremesa. Arruma-se tudo e iniciam-se as limpezas. 

“Estar no lodo”

Na pausa entre serviços vou a casa descansar (moro nas proximidades). Pelas 18h30, quando regresso, já está praticamente tudo organizado para a noite (são repostos alguns ingredientes e preparos, para que estejam mais frescos, mas o essencial foi realizado de manhã). O jantar do pessoal realiza-se por essa altura. Normalmente varia entre frango, almôndegas, hambúrgueres e lasanha. Há salada para quem quiser e peixe uma vez por semana.

À noite retomo o garde manger. Adivinha-se um momento agitado, com vários grupos (pequenos) e menus de degustação. Fico com a responsabilidade de preparar tártaro e as saladas, de novo sobre a orientação do “desgraçado” André, que lá me vai explicando as tarefas - com o apoio do Paraque (a alcunha vem de ter sido pára-quedista), cozinheiro, pau para toda a obra na cozinha e animador de serviço. Por exemplo, há um ceviche de lentilhas que leva quase todos os elementos do de carne, só que com amêndoas torradas. Faço-o sob sua orientação e no fim diz-me para provar. Falta algo: tabasco. Oops!, pus de mais. Há que acrescentar mais meia dose para obter o equilíbrio no palato. Recupero o controlo mas a determinado momento já dou por mim a querer enviar um shot de vodka (que acompanha o tártaro) com os croquetes de cozido à portuguesa, em vez da maionese de chouriço. Boa, campeão. Era para a mãe do chef e na verdade a senhora até era capaz de gostar. Acontece que aqui o freestyle apenas está reservado ao filho (ou ao seu braço direito). 

No dia seguinte, ao jantar, fico encarregado de replicar o aperitivo (também conhecido por amuse bouche) criado pelo sub-chef Martin Schreiner. Este austríaco, de 28 anos - que veio para Lisboa atrás de uma namorada, após oito meses na cozinha de duas estrelas Michelin do Vila Joya, no Algarve - preparou uma terrina de porco com cogumelos, rúcula e vinagrete de mostarda. Mostra-me como se faz o empratamento, aconselha-se com o chef sobre que nome dar-lhe e sugere-me que o apresente à equipa de sala. 

À noite o serviço é mais espaçado e calmo, sobretudo nestes de dias de fim de Agosto. As refeições prolongam-se por mais tempo, aumentam o número de entradas e de sobremesas e os pedidos de pratos principais são mais diversificados. Chega a haver “lodo” mas sempre controlado. Ainda assim, foram dados mais de 60 jantares, o que, a juntar a uma média de 50 almoços, faz com que se ultrapasse diariamente a centena de clientes servidos.

As excepções verificam-se à sexta-feira e, sobretudo, ao sábado, em que são dadas cerca de 130 refeições - entre elas vários menus de degustação - com o almoço a prolongar-se até às 16h e o jantar até à 1h. (Fora do período estival, o número de refeições diárias pode chegar às 170.)

Ao longo da semana vou variando nas funções. Passo ainda pela pastelaria, um lugar perigoso para um viciado em açúcar, mas com funções facilitadas, dado haver mais elementos preparados com antecedência. Ainda que aconteçam muitas tarefas repetidas, os dias na cozinha de um restaurante como O Talho nunca são iguais. As exigências dos clientes são sempre diferentes, tal como os produtos ou a mente irrequieta dos chefs.

Já tinha observado o trabalho de cozinha em vários restaurantes e até passei um dia, como espectador, nos bastidores de um dos melhores do mundo, o Mugaritz, em San Sebastian (Espanha). Contudo, uma coisa é ver o trabalho dos outros, outra coisa é senti-lo no corpo. Ao terceiro dia doíam-me de tal forma as pernas que parecia que subira a serra da Estrela ao pé-coxinho e, ao longo da semana, cortei-me, queimei-me, torci um pé e até me gripei. Tudo mazelas ligeiras que se esquecem com a adrenalina, com o “estar no lodo” (a determinação para não perder o Norte quando os pedidos chegam em catadupa), com o bailado moderno de corpos atarefados que se cruzam sem chocarem num espaço reduzido, quente e escorregadio. A profissão é dura e, hoje, são raros os que caem nela por acidente - ainda que o glamour do chef-estrela possa levar alguns ao engano. 

Quando a experiência terminou, apeteceu-me continuar. Excitação da novidade? Por certo que sim. Mas com 45 anos não vou mudar novamente de profissão. Não?  

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