É um projecto ambicioso: dia 19 de Março, 1300 chefs em cinco continentes vão cozinhar uma refeição francesa. A ideia foi inspirada pelos Jantares de Epicuro, organizados no início do século XX pelo famoso chef Auguste Escoffier com o objectivo de divulgar a cozinha francesa no mundo. No primeiro participaram mais de quatro mil pessoas e no último — em 1914, nas vésperas da I Guerra Mundial — dez mil, espalhadas por 147 cidades.
Agora, no século XXI — e numa altura em que tanto se fala da gastronomia espanhola, da nórdica ou da peruana —, a França recupera o projecto de um jantar global, a que chamou Goût de France/Good France, e no qual junta a filosofia da refeição francesa (já lá vamos) às actuais preocupações com a saúde e uma alimentação equilibrada. Por isso, os chefs participantes foram convidados a apresentar a sua candidatura com um menu que cumprisse estes dois requisitos.
As candidaturas, vindas de todo o mundo, foram avaliadas por um júri dirigido por outro chef famoso, Alain Ducasse. O que se pretende com esta iniciativa que foi proposta por Ducasse ao Governo francês, está, aliás, resumido nesta frase do chef: “Falar de cozinha — da cozinha francesa — é também falar da alegria de viver, da elegância, do optimismo e do prazer — ideias que são cruciais para a imagem da França.” Será também ocasião para lembrar que a refeição francesa faz parte da lista de Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.
Em Portugal são 17 os restaurantes participantes: Adlib, Anfiteatro, Arcadas da Capela, Belcanto, Bistro 100 Maneiras, Cafetaria Mensagem, De Castro Flores, Eleven, Fortaleza do Guincho, Largo, Lisboète, Mesa do Bairro, O Nobre, Poivron Rouge, Casa de Pasto, Varanda (do Ritz) e Vila Joya. Não sendo possível falar com todos os participantes, a Fugas optou por conversar com os dois que são franceses — Vincent Farges, da Fortaleza do Guincho, e Pascal Meynard, do Varanda, o restaurante do Hotel Ritz Four Seasons — para lhes perguntar o que é, afinal, a tão falada “escola francesa”.
Língua comum na cozinha
Em primeiro lugar, há a formação. “A escola lá é completamente diferente”, diz Vincent Farges. “O problema aqui é que não existe um programa, não há um livro único sobre as bases da cozinha. Em França, cada chef, seja em que lugar for, se você lhe pedir para fazer um determinado molho sabe exactamente o que fazer. E o mesmo para as técnicas de corte, as sopas, as saladas, a forma de trabalhar o peixe, ou a carne. Aqui, se pedir a qualquer cozinheiro para fazer uma sopa da pedra não há uma receita oficial.”
No fundo, a escola francesa baseia-se num cânone de receitas e técnicas base que criam uma “língua comum” entre todos os que se dedicam à cozinha. “Há uma linha condutora, há termos técnicos. Se pedimos a alguém para cortar uma juliana, tem que ser uma juliana. Tem que haver uma certa disciplina para se ser bom.”
Pascal Meynard fala também da importância da aprendizagem. “Em França, é mais longa. Ninguém se considera um chef com 20 anos. O importante são as bases, a cultura e a aprendizagem. Noutros países as pessoas aprendem aqui e ali, o resultado não é igual. Na escola de hotelaria em França há muito mais rigor. É preciso uma boa base para se ser sólido. A criatividade vem depois. Os jovens têm tendência para ultrapassar etapas, mas é preciso trazê-los de volta às bases, como se faz um molho, como se prepara um peixe.”
Ambos falam também do “respeito pelo produto”. “Trabalho os legumes de uma maneira que aqui há pessoas que nunca viram. A técnica francesa liga-se muito a isso: há uma forma de sublimar os legumes que por sua vez vai sublimar o prato principal”, diz Vincent Farges. E tudo isto é potenciado pela enorme diversidade de legumes que se encontra num mercado francês, sublinha. “Se formos a uma feira de rua, em qualquer época do ano, temos legumes diferentes. Aqui, estamos na Primavera e não há nada de especial. Há brócolos, batatas, nabos, cenouras… é a mesma coisa o ano inteiro. Em França já há os espargos, as alcachofras, as favas, as ervilhas, uma variedade que nos abre o espírito e a criação.”
Tanto Vincent como Pascal procuram, por isso, produtores que lhes ofereçam produtos excepcionais, como os legumes biológicos de Maria José Macedo, da Quinta do Poial, em Azeitão, ou os citrinos exóticos do Lugar do Olhar Feliz, no Alentejo. Quer uns quer os outros estarão presentes nos menus que os dois chefs prepararam para o Goût de France, no dia 19 — no Ritz o menu fica disponível até dia 26.
“Quis trabalhar sobretudo a frescura”, afirma o chef do Ritz, referindo-se à entrada fria (cada menu tem que ter obrigatoriamente um aperitivo, uma entrada fria, outra quente, um prato de peixe, outro de carne, queijo francês e uma sobremesa) que vai apresentar: carabineiro marinado com citrinos, legumes crocantes e azeite de basílico.
Com excepção do aperitivo de foie gras com crocante de chocolate 70% e gelatina de Porto Tawny, e do queijo (que tem que ser francês), Pascal vai trabalhar produtos portugueses, do salmonete com crocante de azeitona, mariniére de bivalves e emulsão de clorofila à vitela de leite com uns toques orientais dados pela combava (citrino), beringela lacada com miso, e estaladiço de kumquat (outro citrino) e sésamo preto (o menu custará 75 euros).
Vincent vai usar os pequenos legumes da Quinta do Poial com buntan (também um citrino) e nozes de macadâmia, seguido por um prato que considera um pouco mais arriscado para o gosto dos portugueses, as molejas com alcachofras. Terá ainda um robalo — ambos os chefs fazem grandes elogios ao peixe português — cozinhado ao vapor de algas frescas, e um borrego de leite dos Pirenéus com presunto Pata Negra (na Fortaleza do Guincho, o menu tem um preço de 125 euros). Para finalizar, ambos escolheram sobremesas nas quais trabalham o chocolate.
E a manteiga e as natas, tão presentes quando de fala de cozinha francesa clássica, que lugar têm elas numa refeição que quer promover a alimentação saudável? “Já não é nada como era há dez anos”, garante Pascal. “Antes faziam-se muitos molhos com manteiga e natas. Hoje os molhos são muito mais ligeiros, com infusões, com azeite, tudo muito menos pesado. Nós aqui cortámos na manteiga cerca de 80%.”
Vincent explica por seu lado que, na questão da manteiga e das natas, a França sempre foi dividida ao meio. “No Norte há pouco azeite, e por isso usa-se muito natas e manteiga, no Sul é que há oliveiras. Até há uns anos, a minha mãe, por exemplo, trabalhava com pouco azeite, eu chegava a casa e perguntava ‘não há azeite?’. Na região onde morei desde a infância não havia muito azeite, o que fazia dele um produto caro. Hoje em dia é diferente e cada vez mais os chefs usam o azeite.”
Mas com mais ou menos azeite ou manteiga, o que faz a gastronomia francesa é, de acordo com os dois chefs, a ideia de uma refeição onde o convívio e a partilha são fundamentais, a par da tal escola de técnicas rigorosas. Quanto ao resto do mundo, não estão preocupados. “Os chefs de que se fala muito hoje têm todos como base a cozinha francesa.”
Vincent não podia estar mais de acordo: “Os chefs nórdicos, que estão agora em foco, onde é que foram aprender? A França. A base que a gente ensina em França é cozinhar com alma, com sentimentos, com sensibilidade. Os espanhóis vieram com técnicas novas de desestruturação, mas para se ter uma desestruturação é preciso ter uma base sólida. E para se ter um bom molho tem que se ter um bom caldo no início.” Por tudo isto, não tem dúvidas: “A cozinha francesa continua a ser uma das maiores do mundo.”
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Um jantar à grande e à francesa