Este ano o convento do Redentor foi a minha casa durante duas semanas. É um convento franciscano e este também é para mim um motivo forte para o regresso: se há ordem religiosa que admiro, é a dos franciscanos. Pelos seus valores, pela sua filosofia de vida, pelo seu recentrar da existência no que é essencial e pouco mais do que isso. Ainda pela sua alegria e discrição. Acompanhei o dia-a-dia dos frades franciscanos durante a minha estadia e por vezes cruzava-me com eles, apesar de as suas celas ficarem noutra ala do mosteiro. A sua presença fazia-se notar, sobretudo no pátio interior, pelo cuidado que punham ao tratar das oliveiras, animais e flores.
Esta minha admiração pela ordem de São Francisco já é antiga. Lembro-me de, em pequena, ter ido ao cinema com o meu pai e um dos meus irmãos ver o filme Fratello sole, sorella luna, de Franco Zeffirelli. Impressionaram-me muito as imagens daquele jovem que abandonou, feliz, a família, a casa onde nasceu, Assis. E partiu.
Já adulta, visitei Assis e a igreja dedicada a Francisco. Assis é linda, no topo de colinas da região da Umbria, e a visão que se tem de cima para a planície é de recordar para sempre. Emocionei-me quando entrei na basílica e no espaço reservado ao túmulo de São Francisco. Ainda com os frescos de Giotto di Bondone, que contam a história da vida do Santo. Francisco passou por Veneza, regressando de uma viagem ao Oriente.
As razões do meu regresso à ilha da Giudecca não se ficam por aqui. Nesta ilha há uma outra Veneza, aquela que foge à agitação barulhenta e anónima dos pontos mais centrais da cidade. Aqui caminha-se com calma e com espaço. Estamos longe da presença constante de lojas de souvenirs, de ruas estreitas e ruidosas. Aqui há padarias, salumerie, pequenas frutarias, pizzerie, talhos, oficinas de artesãos e associações culturais. Podemos ter por companhia os gatos e as gaivotas. Há um espírito de bairro, onde toda a gente se conhece e se cumprimenta de manhã nas ruinhas estreitas e no supermercado. Nas paragens do vaporetto ouvem-se histórias do dia-a-dia. O mesmo na pizzeria onde se pode encomendar uma pizza que é feita ali à nossa frente, por umas mãos enfarinhadas e frenéticas a moldar a massa e a seleccionar os ingredientes que vão ser colocados sobre ela. Espera-se pela pizza olhando as águas do canal que tem o nome da ilha e Veneza do outro lado, iluminada pelos candeeiros raros.
Uma outra boa razão para a escolha é esta e é irresistível: da Giudecca vê-se Veneza. É isso – do outro lado, enquanto esperava pelo vaporetto, via San Marco, a piazetta, a fachada do Palazzo Ducale, a igreja da Salute, a torre de San Giorgio Maggiore... Do lado esquerdo, Zattere e a sua bela igreja.
Dediquei uma das manhãs a percorrer o fondamenta Zattere até à ponta da Dogana. E a dar a volta, até chegar à igreja della Salute. Dali, ao longo daquela outra margem do canal da Giudecca, vi a ilha alongada, com as suas igrejas, casas, estabelecimentos virados para a água: pequenos restaurantes, farmácias, supermercados e as pontes que ligam as suas diferentes partes. Na verdade a Giudecca é constituída por oito ilhotas, ligadas por pontes. Quem vem da estação de comboios em direcção ao convento, segue no vaporetto a linha da costa da ilha, apreendendo toda a sua extensão. Quando visitei o interior do Palazzo Ducale gostei de ver a ilha, a igreja do Redentor e de pensar que ao fim daquele dia, depois das filas e da multidão aglomerada nas ruas estreitas, iria regressar àquela casa serena.
A igreja do Redentor foi projectada por Andrea Palladio. O convento com o mesmo nome fica por trás. Do meu quarto via-se bem a cúpula. O seu interior mereceu várias visitas, pois está repleto de obras de arte de pintores como Tintoretto e Veronese.
Do lado sul da ilha, vê-se a laguna. É um outro ambiente, aquele que se vive deste lado. Há hortas, jardins, cais de embarque. Terraços de casas viradas para estas águas, mais silenciosas e calmas, raramente cruzadas por aquelas embarcações que não descansam durante o dia no outro lado.
O jardim do convento era virado para sul. O pôr do sol aqui é absolutamente imperdível. Assim como o amanhecer, ao som dos campanários. Os ciprestes que via todas as manhãs ao abrir a janela do quarto estavam deste lado da ilha. Talvez o melhor momento do dia para muitos fosse mesmo o crepúsculo. É que as esplanadas dos cafés e restaurantes começam a ficar preenchidas a esta hora. Estendem-se pelo fondamenta, muito próximas da água. Porque é mesmo ali que se quer estar, a olhar para Veneza, do outro lado, e a acompanhar o pôr do sol.
Não me cansei de andar de vaporetto. Absolutamente necessário para ligar a Giudecca à outra Veneza. Um transporte rápido e eficaz, que percorre os principais canais da cidade e que permite ligar-nos a terra firme. Como era bom percorrer as águas num transporte com vista contínua para as fachadas de palácios, de igrejas, para pequenas praças, para campanários...
Uma outra ilha, a de San Giorgio Maggiore, fica quase colada à da Giudecca. A única maneira de lá chegar é de barco. Há uma paragem do vaporetto que nos deixa ali. A caminho da Piazza San Marco, é a última antes de pisarmos o centro nevrálgico de Veneza. Em 2015, por causa da Biennale de Arte, a ilha de San Giorgio tinha para mim um motivo acrescido de interesse : as esculturas de Jaume Plensa, um artista catalão. A visita era obrigatória e não perdi tempo – parte do meu segundo dia foi lá passado.
Seja do lado norte, seja do lado sul, a Giudecca tem uns traços muito próprios, que a tornam apetecível para uma estadia serena, num enquadramento simultaneamente exclusivo e algo bucólico. Diz a história da ilha que durante muito tempo foi o espaço preferido de famílias nobres e burguesas, que aqui possuíam os seus palácios e casas, para períodos de descanso estival ou durante o inverno.
A autora assina o blogue Cartografia Pessoal