Fugas - dicas dos leitores

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Na ilha da Giudecca há uma outra Veneza

Por Ana Sofia Melo

A casa que escolhi para mim em Veneza foi a mesma que me acolheu no ano passado. Não tive dúvidas na escolha reincidente, assente na vontade de regresso a um espaço que já me é muito familiar.

Este ano o convento do Redentor foi a minha casa durante duas semanas. É um convento franciscano e este também é para mim um motivo forte para o regresso: se há ordem religiosa que admiro, é a dos franciscanos. Pelos seus valores, pela sua filosofia de vida, pelo seu recentrar da existência no que é essencial e pouco mais do que isso. Ainda pela sua alegria e discrição. Acompanhei o dia-a-dia dos frades franciscanos durante a minha estadia e por vezes cruzava-me com eles, apesar de as suas celas ficarem noutra ala do mosteiro. A sua presença fazia-se notar, sobretudo no pátio interior, pelo cuidado que punham ao tratar das oliveiras, animais e flores.

Esta minha admiração pela ordem de São Francisco já é antiga. Lembro-me de, em pequena, ter ido ao cinema com o meu pai e um dos meus irmãos ver o filme Fratello sole, sorella luna, de Franco Zeffirelli. Impressionaram-me muito as imagens daquele jovem que abandonou, feliz, a família, a casa onde nasceu, Assis. E partiu.

Já adulta, visitei Assis e a igreja dedicada a Francisco. Assis é linda, no topo de colinas da região da Umbria, e a visão que se tem de cima para a planície é de recordar para sempre. Emocionei-me quando entrei na basílica e no espaço reservado ao túmulo de São Francisco. Ainda com os frescos de Giotto di Bondone, que contam a história da vida do Santo. Francisco passou por Veneza, regressando de uma viagem ao Oriente.

As razões do meu regresso à ilha da Giudecca não se ficam por aqui. Nesta ilha há uma outra Veneza, aquela que foge à agitação barulhenta e anónima dos pontos mais centrais da cidade. Aqui caminha-se com calma e com espaço. Estamos longe da presença constante de lojas de souvenirs, de ruas estreitas e ruidosas. Aqui há padarias, salumerie, pequenas frutarias, pizzerie, talhos, oficinas de artesãos e associações culturais. Podemos ter por companhia os gatos e as gaivotas. Há um espírito de bairro, onde toda a gente se conhece e se cumprimenta de manhã nas ruinhas estreitas e no supermercado. Nas paragens do vaporetto ouvem-se histórias do dia-a-dia. O mesmo na pizzeria onde se pode encomendar uma pizza que é feita ali à nossa frente, por umas mãos enfarinhadas e frenéticas a moldar a massa e a seleccionar os ingredientes que vão ser colocados sobre ela. Espera-se pela pizza olhando as águas do canal que tem o nome da ilha e Veneza do outro lado, iluminada pelos candeeiros raros.

Uma outra boa razão para a escolha é esta e é irresistível: da Giudecca vê-se Veneza. É isso – do outro lado, enquanto esperava pelo vaporetto, via San Marco, a piazetta, a fachada do Palazzo Ducale, a igreja da Salute, a torre de San Giorgio Maggiore... Do lado esquerdo, Zattere e a sua bela igreja.

Dediquei uma das manhãs a percorrer o fondamenta Zattere até à ponta da Dogana. E a dar a volta, até chegar à igreja della Salute. Dali, ao longo daquela outra margem do canal da Giudecca, vi a ilha alongada, com as suas igrejas, casas, estabelecimentos virados para a água: pequenos restaurantes, farmácias, supermercados e as pontes que ligam as suas diferentes partes. Na verdade a Giudecca é constituída por oito ilhotas, ligadas por pontes. Quem vem da estação de comboios em direcção ao convento, segue no vaporetto a linha da costa da ilha, apreendendo toda a sua extensão.  Quando visitei o interior do Palazzo Ducale gostei de ver a ilha, a igreja do Redentor e de pensar que ao fim daquele dia, depois das filas e da multidão aglomerada nas ruas estreitas, iria regressar àquela casa serena.

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