Tantas imagens à minha volta, o mercado prestes a fechar, as caras multicores, os penteados multitexturas, as frutas multissabores. Quão feia é a carne crua.
Cheira a mercado de verdade, cheira a Bolívia e Peru, mas só vejo árabes e chineses. Um arco detrás de outro arco, meia dúzia de escadas, um túnel nas traseiras das casas, o pó por todos os lados, o lixo no chão, a água a escorrer até ao esgoto em linhas turvas, grades nas janelas minúsculas rente ao chão, eu. Eu já estive aqui, sim, eu conheço esta rua nas traseiras das casas. Há roupa estendida, não era proibido? Não, por favor, não proíbam os rastos do cotidiano, não proíbam as pegadas das personagens reais desta cidade. Ali há roupa lavada, ali há gente que vive, quanta beleza no simples facto de viver, quanta beleza no simples facto de que a lua se esconde detrás das nuvens densas, mas hoje não chove.
Mantas, toalhas, lençóis, não sou a única que o vê, o chinês também, ele olha para mim e olha para onde olho. O que vês ali em cima? Também há plantas e vasos de várias cores, também há janelas, há uma sombrinha a cobrir as flores, do sol ou da chuva? Aqui quase não entra o sol, deve ser da chuva. Mas as janelas, quero ver o que há detrás, deixas-me entrar? Na da luz roxa, na da luz amarela e na das cortinas verdes. Quero vê-las todas.
O que é que escreves? Escrevo as perguntas nos teus olhos, escrevo-te a ti a olhar para mim, escrevo os teus passos despercebidos. Viste a roupa lá em cima? Claro que sim, está sempre lá, mas amanhã terá outras cores, amanhã alguém se deitará nestes lençóis e vestirá estas cuecas, as plantas desprenderão folhas e eu quero estar lá para ver, no momento exacto em que caírem no chão, quero desenhar as linhas do seu movimento, da sua queda delicada, com os olhos ou com os dedos, tanto faz. Viste quanta beleza? Viste como as colunas se alinham debaixo de dois arcos, viste como as motas pendem à espera dos seus donos, viste como as pessoas te sorriem quando dás por elas, quando procuras algo além do seu olhar? E aquela porta de castelo desenquadrada, aquela ranhura para o correio, onde estão as cartas de amor? E o senhor que carrega as caixas, vem do mercado; e os grafitti feios e os números de telefone nos autocolantes às cores, ligamos? Os reparos nas paredes descuidadas, gosto delas assim, os cabos velhos e uma garrafa de plástico entrelaçada, o pó outra vez, quanto pó nestas grades a abanar com o ar. En lloguer diz esta casa, mas aqui não, aqui não quero viver porque não entra o sol, só um bocadinho e isso não basta. Mas passa a lua à metade, viste? Passam pessoas com sacos ao ombro, passam pessoas que não sabem o que faço aqui parada, eu também não.
(Agora vejo a lua, há bocado via outras coisas.)
A autora assina o blogue Desviagens | Facebook