o crescente que marca o fim do jejum
lhe brilha no semblante
Ibn as-Sîd
A viagem tinha sido planeada, mas esta crónica não.
Se ela, a viagem, visava verificar a hipótese de uma narrativa — “Beirute, uma encruzilhada de destinos” —, sendo Mértola o eixo que permitiria a relação com aquela cidade mediterrânica, a crónica nasceu da urgência do tempo que se vivia, uma semana depois dos atentados de Bruxelas.
A Hospedaria Flor do Guadiana, estabelecimento moderno e confortável situado no limite norte da vila, a cerca de dez minutos do centro, foi a escolhida para a estadia; e o centro, em Mértola, pode coincidir com a fronteira entre a “vila nova” e a “vila velha”, o espaço intramuros que fala do al-Andalus.
26 de março, sábado
No Largo do Guadiana (de Vasco da Gama na toponímia da vila), à esquerda do café que lhe dá nome, está o mercado; e é entre o Guadiana, café, e o mercado com vista para o outro Guadiana, o rio, que se entra na “vila velha”.
A jornada leva à Rua da Igreja, que oferece dois motivos de interesse: a Casa de Mértola — réplica da típica casa da vila —, e a Oficina de Tecelagem, espaço de fabrico e de exposição de peças em lã com motivos regionais cruzados com memórias mediterrânicas.
Subindo a rua encontra-se, à direita, o Castelo e, mais à direita, a Igreja Matriz. Mas hoje é dia de virar costas ao sagrado e tomar a Rua Elias Garcia, que desce ao longo das muralhas e leva ao Centro de Estudos Islâmicos, que, para além da biblioteca com mais de sessenta mil documentos, acolhe investigadores a quem fornece apoio académico e logístico.
Próximo deste, o núcleo de Arte Islâmica com o acervo que testemunha a presença islâmica, e onde se destaca a maqueta da mesquita de cinco naves. No seguimento da Rua Combatentes da Grande Guerra encontra-se a Torre do Relógio, estrutura de finais do século XVI assente sobre antigo torreão das muralhas, qual farol à navegação, e de onde arranca um lance de escadas de ligação ao rio e ao que resta da Torre do Rio, verdadeira marca de poder na defesa de Mértola, que ilustra, agora como memória, a importância do rio enquanto via de ligação entre a Península e o Mediterrâneo Oriental. E é aqui, junto ao rio, neste final de tarde, que um silêncio imenso, apenas quebrado por breves ecos, recorda com surpresa o Douro, neste ambiente denso e suspenso, aqui enquadrado pela voz dos poetas:
este é o rio e estes os seus bosques:
corpo,
cuja a alma é a brisa dos jardins,
rio,
se a brisa dorme à superfície,
cota de malha,
se os ventos sobre ele se perturbam.
Ibn al-A’lam ash-Shantamarî
27 de Março, Domingo de Páscoa
Estes versos oferecem um horizonte tranquilo, de quase abandono, ligado a uma violência latente, súbita afirmação de uma vontade que se quer livre no limite da própria vida; é o seu eco que, partindo do Largo do Guadiana, aponta a direcção da acrópole.
Antes da Igreja Matriz, à esquerda, situa-se o Castelo, marca de poder erguendo-se altiva no horizonte; memórias da Reconquista que ali ao lado, na igreja, coincidem com as que assentam noutras memórias, as do Islão; neste tempo de ressurreição, será o próprio espaço litúrgico que vai permitir pensar a relação entre duas visões de mundo que se cruzaram durante séculos e de que resultou este “coração árabe” que ecoa em Mértola.
É tempo de celebração pascal e é ela que oferece uma perspectiva única: os crentes rezam diante da cruz e também do que resta do mirhab; isto é, nestes tempos marcados pela violência recente vivida em Bruxelas, é possível ver cristãos orando virados para… Meca. Surpreendente! Surpreendente e revelador dessa osmose que se sentiu no exterior, junto ao rio, dessa possibilidade de diálogo e de abertura ao que aparece como radicalmente outro.
Resta a visita à alcáçova, à réplica de uma casa islâmica, e descer de novo em direcção ao rio, cruzando agora a encosta marcada por socalcos (mais uma vez o Douro) num emaranhado de ruelas que culmina na Praça Luís de Camões inundada por uma atmosfera matinal quase inebriante pela intensidade do perfume da flor de laranjeira; e de novo a voz dos poetas:
e na ânsia da viagem
eis que, por fim,
eu parti…
Ibn Darrâj al-Qastallî
Antes de partir, visita aos jardins do Convento de São Francisco, propriedade do casal de artistas holandeses Christiaan e Geraldine Zwanikken, espaço ideal para um final de tarde tranquilo.
Esta crónica, ao mesmo tempo que confirma a hipótese que a narrativa que lhe deu origem exigia, pretende também ser testemunho da possibilidade de um diálogo entre mundos, cruzando destinos, para lá da violência gratuita: re-ligare – Mértola-Beirute.
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Nota: os versos citados foram extraídos da obra de Adalberto Alves, O meu coração é árabe (3.ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999), publicação a que o título desta crónica muito deve.