Fugas - hotéis

  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda
  • Adriano Miranda

Teremos sempre a Galiza

Por Sandra Silva Costa

Não sabemos se foi assim que garantiu o selo exclusivo Relais&Châteaux, mas este hotel de Santiago de Compostela primeiro conquistou-nos pelo estômago, depois pelos olhos e finalmente pela pele — exactamente por esta ordem. À mesa, à janela com vista para um verde imenso ou no spa, A Quinta da Auga é um mimo permanente.

Pensávamos que íamos fugir de Portugal durante dois dias, mas o “destino” trocou-nos as voltas. O café era Delta, o serviço de mesa Vista Alegre, os talheres Cutipol — mais à noite percebemos que as toalhas de banho são Sampedro, mas para já ainda estamos a usufruir das tréguas iniciais de um Inverno de má memória. Embora o calendário nos possa desmentir — para nós, Março chegou há pouco, ainda é pequenino —, este é o primeiro dia do resto da Primavera e isso, para já, basta-nos. Mas o que dizer se podemos receber os raios de sol primordiais em contexto a condizer? À nossa volta é tudo verde, verdinho, há camélias a despontar, heras a trepar pelas paredes de granito — e ao fundo ouve-se o barulho de água a correr.

Estamos à mesa há umas duas horas e meia e por aqui já desfilaram mexilhões de escabeche, croquetes de choco, vieiras, empada de bacalhau com passas, lulas com arroz negro, tamboril, bacalhau com broa — e desistimos de anotar quando tivemos de dizer basta e rejeitar a jarreta de vitela por querermos guardar espaço para as sobremesas, que nos abstemos de reproduzir por respeito às gulas alheias. No fim disto tudo, pedimos um café solo e secretamente fazemos figas para que seja pelo menos aceitável. Chegou um Delta no ponto certo e foi aí que acordámos para a vida. Estamos na Galiza, é certo, mas há muito de Portugal por aqui.

Explica-se tudo de uma penada: Luísa García Gil, a proprietária desta A Quinta da Agua, em Santiago de Compostela, é apaixonada por Portugal. Passa a fronteira sempre que pode e à força de tantas viagens já sabe onde há “boas ferrerías” (tem especial gosto por estas lojas) em Viana do Castelo ou em Guimarães; conhece bem o Porto — sabe o nome das ruas mas ainda lhe falta encontrar “um bom alfaiate” para o marido; de Paços de Ferreira comenta que é “a capital do móvel” e adora as casinhas às riscas da Costa Nova. Há uns anos deu este título a uma crónica que mantinha no Correo Gallego: “Teremos sempre Portugal”.

Quando puxámos a cassete atrás e rebobinámos a nossa estadia n’Quinta da Auga percebemos que podemos pagar na mesma moeda: afinal, daqui para a frente teremos sempre a Galiza. Ou pelo menos teremos sempre este refúgio verde e água que abriu portas em 2009 e um ano depois entrou para a exclusiva rede Relais&Châteaux.

A história do hotel não é difícil de contar. O edifício de granito que temos à frente dos olhos data do século XVIII e nele funcionou uma fábrica de papel — ainda há vestígios desse passado nalguns cantos desta A Quinta da Auga, de que é exemplo o canal que ainda hoje é visível no quarto 301. Algures no século XIX o edifício foi reconvertido para albergar uma fábrica de lãs, primeiro, e de cerveja e de gelo depois. Da década de 1960 até 2003, o espaço esteve abandonado, conta Luísa Lorenzo, filha de Luísa García e directora do hotel. Foi nessa altura que entraram em cena as Luísas.

A família comprou a propriedade e iniciaram-se as obras de recuperação — com a particularidade de o projecto ter sido tomado em mãos por Luísa-mãe, arquitecta de formação. Os trabalhos de reconversão da antiga fábrica em hotel boutique duraram seis anos e pelo meio Luísa-mãe e Luísa-filha gastaram meses inteiros a dar a volta a antiquários e aparentados para comporem a decoração do hotel.

“Há muito de nós neste hotel”, comenta Luísa Lorenzo quando nos faz a visita à Quinta da Auga. “Para além de ser responsável pelo projecto de arquitectura, a minha mãe também é responsável pela decoração. Fomos nós que decorámos isto tudo.” “Isto tudo” são os 59 quartos (três suites) e demais espaços comuns do hotel. E nenhum quarto é igual a outro: não são só as cores das paredes que mudam, é também o papel de parede diferente, as camas, as poltronas, as escrivaninhas… A cada porta que se abre percebe-se que o bom gosto é quem mais ordena.

Na roleta do check in calhou-nos o quarto 415, um twin sóbrio e elegante. Entramos e de imediato pousamos os olhos na parede de granito que emoldura uma janela com vista para o rio Sar, que corre lá ao fundo no meio do arvoredo frondoso que quase o esconde. Uma vista destas, ainda por cima num dia tão soalheiro, praticamente anula tudo o que de bom se possa dizer sobre o interior do quarto, mas vamos a isso. Este 415 é simples e funcional: duas camas, duas poltronas, uma mesa de trabalho. A parede onde assentam as cabeceiras das camas é revestida por papel que lembra palha de tom acastanhado; as restantes estão pintadas de cinzento e adornadas por quatro fotografias de portas, cortesia de Luísa-mãe. As fotos da sua autoria, sempre de portas, espalham-se por todo o hotel: no quinto piso estão as imagens que captou em Portugal.

Voltando ao quarto, a casa de banho, para além dos atoalhados Sampedro a que já aludimos, está aparelhada com amenities de qualidade com o selo Relais&Châteaux e, detalhe importante para as senhoras, dispõe de um secador a sério. A cama é confortável e as almofadas também. Não fora o calor que sentimos e a noite de sono teria sido perfeita.

Pela manhã, abrimos as portadas de madeira e deparamo-nos com novo dia radioso. Descemos para o pequeno-almoço e reparamos no enorme salão ao lado da recepção. Há um agradável cheiro a lareira no ar, que a noite de ontem fez-se fria. É enorme, a lareira, de pedra, e alegra esta sala imensa onde se espalham sofás de couro, estantes com livros à disposição do hóspede, abat-jours diversos, jarras com tulipas brancas e fotos de família com a rainha Sofia e tudo. Facilmente ficaríamos aqui, enterrados numa poltrona, mas o cheiro a pão fresco leva-nos a outras paragens.

Começamos no pão, é verdade, mas não resistimos e terminamos nos churros. Salva-nos Luísa-filha, que nos convida para um passeio pelo exterior do hotel. Embala-nos o correr do rio, sentimos o aroma suave das flores, embrenhamo-nos na floresta de bambu. Tivéssemos mais tempo e partiríamos à descoberta dos segredos que se escondem neste hectare de quinta. Fica para a próxima, está prometido — afinal, teremos sempre a Galiza.

--%>