Fugas - restaurantes e bares

Joana Bourgard

Caracol, entre petisco de tasca e iguaria de restaurante de topo

Por Joana Ramos Simões

Com orégãos ou aromatizados com manteiga, tomilho e pimenta preta, são um petisco com muitos apreciadores . Seja para fazer companhia a uma cerveja, seja como entrada de uma refeição requintada. Eis os segredos deste molusco, com destaque para o caviar que se faz com os seus ovos.

VÍDEO: Vamos aos caracóis?


Tanto pode ser servido numa tasca lisboeta, como no mais fino restaurante parisiense
. Petisco de fim de tarde de Verão, regado a cerveja, para alguns; e iguaria gourmet, acompanhada por um vinho de qualidade, para outros.

Falamos do caracol, alimento que faz parte da nutrição humana desde a era do Paleolítico. Nesta fase da existência humana, os moluscos terrestres representavam para o homem uma opção alimentar sem grandes riscos. E o caracol, que pode deslocar-se a uma velocidade até cinco metros por hora, tornava-se presa fácil.

Consumidos em grande escala na Grécia e na Roma antigas, bem como na Ibéria (hoje Portugal e Espanha), os caracóis surgem na Bíblia como um alimento impuro para Moisés. Já na Idade Média, estes animais rastejantes eram bastante consumidos nos mosteiros, durante as vigílias e nos dias em que era proibido o consumo de carne. Com uma esperança de vida curta, entre quatro e cinco anos, sendo grande parte dela dedicada à hibernação, o caracol passa o resto do tempo unicamente a alimentar-se e reproduzir-se.

Carne magra, de baixo teor calórico, com muitas proteínas e de digestão fácil, é bastante popular em Portugal, principalmente na cozinha do Sul -em Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. Consumido no Verão e no final da Primavera, o caracol é ainda visto por cá como um “petisco”, e não como um “produto de luxo”, mas para lá caminha. “Cada vez mais a tendência na alta cozinha é pegar em matérias-primas que não são consideradas de luxo e transformálas”, disse à FUGAS o chefe de cozinha José Avillez.

Há umas semanas, no II Congresso Internacional Vive Las Verduras, em Pamplona, o chefe do restaurante Tavares cozinhou ao vivo um falso arroz de botões de grelos confeccionado num caldo de couve aromatizado com chouriço, caracóis e “caviar branco”. Já havia caviar de esturjão, salmão e outros peixes.

Mas uma das novas tendências na alta cozinha é o caviar de ovos de caracol, que José Avillez comprou a um produtor português, a 500 euros o quilo. Fique a saber que um caracol adulto pode gerar, por ano, cerca de duzentos ovos, que até há bem pouco tempo serviam apenas para produzir novas gerações destes “bichinhos”.

João Lopes, da BioJogral, defende que os caracóis “podem e devem ser considerados gourmet”. O produtor pretende “criar novos mercado e abrir novos mundos ao caracol”, que em Portugal ainda é apenas um produto “das tascas”.

No nosso país a helicicultura (“criação sistematizada em cativeiro, com fins comerciais, de caracóis terrestres e comestíveis”) ainda está a dar os primeiros passos, mas em territórios como Itália e França, por exemplo, é uma actividade que existe há mais de três décadas. Mas, das mais de quatro mil espécies de caracóis que existem, só vinte são comestíveis, e apenas uma permite uma exploração rentável, a “Helix Aspersa”, que se divide em duas variedades, de acordo com o tamanho “Gros Gris” (vulgo caracoleta) e “Petit Gris” (o “caracolito”).

Antes de chegar à mesa, os caracóis têm de libertar tudo o que têm no intestino. “O preto que por vezes é visível nos caracóis demonstra falta de expurgo. O caracol não deitou fora tudo o que devia, e isso pode amargar o sabor”, explicou à FUGAS João Lopes.

Caso decida comprar os caracóis vivos, para posteriormente os cozinhar, convém deixá-los durante cerca de dez dias sem alimento. Durante este período, os caracóis irão libertar tudo o que comeram. Após os dias de jejum, coloque-os num outro recipiente com miolo de pão e folhas de videira ou figueira, durante dois dias. Depois, durante algumas horas, passe-os por água com sal e vinagre. Nessa altura os caracóis irão soltar uma espuma. Deverão ser lavados as vezes que forem necessárias até que não deitem mais espuma.

Mas, para serem considerados produtos gourmet, os cuidados são ainda maiores. Na BioJogral, os caracóis, depois de passarem seis dias a expurgarem tudo o que têm no intestino, são seleccionados à mão, um a um. Os que estão em condições passam por mais uns dias de limpeza, até estarem prontos a serem comercializados. “É um produto de altíssima qualidade”, defende João Lopes, que é, de acordo com José Avillez, “o maior conhecedor de caracóis em Portugal”.

Por existirem ainda em Portugal poucos criadores, a maioria dos caracóis consumidos no nosso país são oriundos de Marrocos, da Hungria e da Turquia. Mas João Lopes quer contrariar essa tendência -e também a de que o caracol é apenas um “petisco que se come nas tascas”. A ver vamos quando se abrirão outras portas ao caracol em Portugal. Será que passará também a ser um produto “das classes altas”, como é em Itália ou em França? Seja como for, está enraizado (e bem) na gastronomia lusa, e estamos a entrar na altura do ano em que deve ser consumido.

Factos sobre o caracol

Uso medicinal
Desde tempos remotos que os caracóis têm sido usados na medicina. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas usavam a água onde os caracóis são cozidos para tratar dores de garganta, bronquites e infecções gastrointestinais. Ao longo dos tempos têm corrido histórias que dão conta de curas milagrosas de úlceras gástricas através da ingestão, pelo menos durante uma semana, de caracóis vivos, sem a casca.

O caracol é ainda usado na cosmética, já que a baba que o animal produz ajuda a regenerar a pele humana. A secreção purificada do caracol é um produto natural com grande poder regenerador cutâneo porque contém, entre outros, proteínas com uma estrutura semelhante às da derme humana, vitaminas, minerais e oligoelementos, especialmente sais de cálcio.

As propriedades regeneradoras da baba do caracol foram descobertas por acaso, há vários anos, quando se reparou que as mãos dos criadores destes moluscos eram muito macias, e que as suas feridas cicatrizavam rapidamente, não deixando marcas.

Descobriu-se então que a baba purificada do caracol serve para regenerar a pele após irritações ou feridas ligeiras, para reduzir as rugas e prevenir os processos de envelhecimento cutâneo, suavizar a epiderme e esbater imperfeições da pele.

Em Portugal já é possível encontrar o gel “Kirege”, à base de extracto purificado de baba de caracol.

Valor nutricional

Rico em proteínas e pobre em gorduras, o caracol é um alimento com alto valor nutricional. Há quem defenda que as mulheres devem comer caracóis enquanto amamentam, já que estes são bastante ricos em cálcio, o que os torna também um bom alimento para quem sofre de raquitismo.

Muito rico em sais minerais e ferro, o caracol é um petisco bom para as grávidas. Por ser pobre em lípidos (gorduras), este animal rastejante pode ser consumido por quem tem problemas de fígado, arteriosclerose, ou sofre de obesidade.

O alto teor de ácidos polinsaturados contidos no caracol faz dele um alimento recomendado a quem tem o colesterol elevado.

100 gramas de caracóis contêm 0,5 -0,8% de lípidos; 60 -80 kcalorias 13,5% de proteínas 83,8% de água 1,5 -2,0% de sais minerais (cálcio, magnésio, zinco, cobre)

Receitas

Método tradicional de cozinhar a carne de caracol A carne de caracol é cozinhada em “court bouillon” (junta-se meio litro de vinho branco a um litro de água, adiciona-se salsa, tomilho, louro, cebola, chalota, alho, sal e pimenta, cravo-da-índia, e outras especiarias, conforme o gosto).

Coloca-se a carne e o caldo dentro de uma panela. Deixa-se ferver em lume brando durante cerca de uma a uma hora e meia, dependendo do tamanho dos caracóis. A carne fi ca então pronta para ser usada noutras receitas.

Caracóis à portuguesa (caracóis pequenos, “Petit Gris”) Leve 1,5 kg de caracóis pequenos ao lume numa panela de água. Junte duas colheres de sopa de azeite, três dentes de alho, uma cebola cortada em quartos, uma folha de louro e um ramo de orégãos.

Tempere com sal, pimenta e piripiri. A fervura deve ser suave e longa (cerca de duas horas). A espuma criada deve ser retirada de vez em quando. Os caracóis devem fi car no líquido da cozedura até ao momento de serem servidos. Os caracóis são retirados da casca com recurso a palitos, alfinetes ou através de sucção.

Escargots à la bourguignonne (caracóis maiores, “Gros Blanc” e “Gros Gris”)
Primeiro deve preparar-se a manteiga: num recipiente misturase um quilo de manteiga sem sal, 25 gramas de sal, 5 gramas de pimenta preta, 150 gramas de alho, 35 gramas de chalota e 90 gramas de salsa (o alho, a chalota e a salsa devem ser picadinhos). Coloca-se um pouco de manteiga em cada casca. Depois introduzse um caracol já cozinhado. Deve completar-se o espaço vazio com mais manteiga. Uma colher de chá de manteiga costuma ser sufi ciente para cada casca. Colocase no forno, a 200 graus, o tempo sufi ciente para que a manteiga derreta. Devem servir-se mal sejam retirados do forno. Para comê-los utilizam-se uns talheres especiais: com uma pequena pinça segurase o caracol, enquanto se retira a carne de dentro da casca com um garfo de dois dentes curvos.

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