Fugas - restaurantes e bares

Nelson Garrido

À grande e à espanhola

Por Ana Brasil

No mapa-mundo dos enchidos, a pequena Guijuelo é capital. Sem grandes atractivos arquitectónicos ou paisagistas, esta cidade de Castela e Leão (Espanha), nos arredores de Salamanca, tem contudo uma particularidade interessante: o número invulgar de produtores de enchidos por quilómetro quadrado. Ou não estivéssemos a falar de uma região que é a responsável por 70 por cento da produção espanhola do tão apreciado presunto ibérico e uma das mais importantes a nível mundial.

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Ana Brasil relatou a sua viagem por Espanha
no blogue Em Viagem Fugas

 

No que toca a presuntos, Guijuelo brilha não só pela quantidade, como pela qualidade, já que é a casa do afamado Joselito, uma marca que conseguiu juntar duas palavras à partida tão distantes como luxo e enchidos. Se bem que Joselito dá o nome também a chouriços, salsichões e a toda uma variedade de enchidos, a estrela da companhia é, sem dúvida, o presunto. Um produto que é tratado com grande reverência desde que o bácoro nasce ao som de música clássica até ao fim do repouso mínimo de sete anos de cada peça de carne. Entre o princípio e o fim da vida, o porco é alimentado apenas com bolotas e passeia ao ar livre para se libertar do stress que, como é sabido, no final lhe dará um mau sabor.

Estas e outras pequenas curiosidades são reveladas ao longo do caminho até ao norte do país para cruzar a fronteira com Espanha. Ao todo serão seis horas de viagem e três chefes de renome que nos acompanham. Luís Baena, Vincent Farges e Pedro Lemos são os companheiros ideais de uma viagem gastronómica por alguns dos produtos gourmet de Castela e Leão que terá como ponto alto, nada mais, nada menos do que um almoço na casa do Joselito. Com um preço de cerca de três mil euros por peça (com uma cura de sete anos), um presunto Joselito é um prazer reservado a poucos.

O mítico chefe catalão Ferran Adrià, Shakira ou a Rainha de Inglaterra apreciam-no regularmente e ajudaram a celebrizá-lo (Lula da Silva fez questão de pedir um Joselito quando veio a Coimbra receber o doutoramento honoris causa). Daí que ao sermos recebidos na casa de José Gómez, o proprietário desta empresa familiar com mais de um século de existência, com um Joselito de nove anos reservado apenas a convidados, não nos sentimos menos do que privilegiados.


Uma brasa que nunca se apaga

"Este é um almoço de quantas horas?", perguntámos quando já estávamos sentados à mesa há pelo menos cinco. Aqui não se come, vai-se comendo, com uma brasa que nunca se apaga para receber as diferentes carnes, todas mal passadas e sem tempero, com que o próprio José Gómez a vai alimentado. "Quantas vezes já cozinharam carne sem lhe pôr nada?", pergunta aos chefes sentados na ponta da mesa que atravessa a sala para sublinhar a qualidade da peça. Um sorriso silencioso serve de resposta.

Com a carne já dentro do forno de lenha, José Gómez é um hábil anfitrião que corta presunto (claro), mas também salsichão e paio enquanto o champanhe é servido em paralelo. É o formato ham and champ que não surpreende quando nos lembramos que entre as marcas de luxo de que a Joselito é parceira está a Don Perignon. Ainda assim, a garrafeira de José Gómez tirou o fôlego aos apreciadores de vinho presentes.

As presenças mais apreciadas à mesa foram os tintos que desfilaram e fizeram perder as horas encabeçados por dois Vega Sicilia: um Valbuena 2001 (mil euros em média por garrafa) e um Unico 1994 que, a cerca de 3500 euros de preço base, não podia ser outra coisa que não o nome com que se apresenta.

A sobremesa foi uma visita à fábrica do Joselito, localizada a dois passos da casa de José Gómez. Do andar de negócios descemos equipados com batas para o nível subterrâneo onde os presuntos estão pendurados no tecto às centenas como morcegos numa gruta. Vários deles já com um destino certo, apesar dos anos que ainda os separam do proprietário. Nenhuma das peças que aqui vemos será vendida cortada. A versão fatiada do Joselito abrange apenas as patas dianteiras do animal, consideradas de menor qualidade. 

Novamente confrontados com a reverência dada ao produto, a pergunta torna-se inevitável: Afinal, o que é que torna este presunto tão especial (uma colecção de prémios internacionais e alguns críticos rendidos descrevem-no com o título de "o melhor presunto do mundo"): "É um presunto muito baixo em sal, muito doce e que tem uma cor rosa púrpura com muita gordura marmoreada, um aroma intenso e muito impacto na boca", descreve José Gómez.


Do presunto para o foie gras

De Guijuelo para Palencia só muito de vez em quando o campo é pontuado por casas. Em Villamartín de Campos, mais do que pessoas, em quantidade estão os lobos (134 habitantes segundo os números de 2004, numa região onde o lobo ibérico está a recuperar).

Pelo menos em número suficiente para arreliar Manuel del Prado, um francês que estabeleceu nesta região a sua visão para uma produção de foie gras que não agride os patos: "O método artesanal que utilizamos para os alimentar é muito semelhante à forma como a mãe os alimenta quando são pequenos", assegura com um dos espécimes nos braços.

"De bucho cheio. Encher o bucho." A expressão só ganha o seu real significado (e peso) depois de uma visita à fábrica artesanal e restaurante Selectos de Castilla onde Manuel del Prado aproveita o pato literalmente até à língua - aliás uma iguaria muito apreciada na China para onde a empresa exporta com frequência.

Aos patos que se passeiam pelos campos, em época de embuche, empurra-se, à mão, cerca de 700 gramas de grão de milho francês pelo gargalo a cada seis horas. A nós, no estranho círculo da vida, foi o foie gras que se desfaz como manteiga na boca, mas também o mi cuit (do francês meio cozido), o presunto de pato (sim, ele existe), as muitas variedades de pâté de foie e o magret recheado de foie gras que escorregaram até ao bucho.

Diante da quinta que serve de restaurante, albergue e de ponto de venda dos vários produtos (a geleia de violeta ainda nos perfuma as memórias) está montada uma escola de equitação e um campo de horseball. "Foi a forma que arranjei de entusiasmar a minha filha para aqui ficar e trazer para cá jovens com quem ela possa estar", explica Manuel del Prado, ex-selecionador espanhol de horseball.

No final, rodeados de pato por todos os lados, pensámos no arroz e passámos a receita que despertou interesse a Maria Reutersten, esposa de Manuel del Prado e mãe para breve, que sabendo tudo do fígado deste animal desconhecia este prato tão comum em Portugal.

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