Esta pode bem ser a nova tendência na vanguarda da gastronomia e, como em tanta coisa, também por aqui os espanhóis parecem tomar a dianteira. Ou melhor, os bascos, já que esta é uma experiência que surge em San Sebastian, cidade em cujos arredores se encontra a maior concentração de restaurantes com estrelas Michellin por metro quadrado do mundo: Arzak, Akelarre, Martin Berasategui, com três estrelas, e Mugaritz, com duas.
Curioso é notar que, apesar de ser o único que não chegou ainda ao topo da classificação do mais afamado guia gastronómico, o Mugaritz ascendeu este ano ao terceiro lugar da mediática lista dos melhores do mundo (da revista britânica The Restaurants), à frente dos seus parceiros locais. Prova de que nestas coisas de classificações há-as para todos os gostos.
E quem fala em Mugaritz fala na vanguarda da chamada tendência naturalista, de que o dinamarquês Noma (primeiro na tal lista mundial) é hoje cabeça de cartaz, mas que tem na casa basca um dos seus precursores. Ora, é precisamente do Mugaritz e do seu criativo e irrequieto chefe, Andoni Luís Adoriz, que chegam agora os sons da gastronomia. Depois de surpreendentes receitas, sempre servidas no ambiente imaculado de um casarão rodeado pela natureza e à imutável temperatura de 22º, Aduriz ambicionava a completa harmonia. "Despertar todos os sentidos. Tornar um menu gastronómico numa experiência musical, buscando sons que decorrem do conceito culinário", como explica no site do seu restaurante.
O trabalho foi executado em conjunto com o músico, também basco, Felipe Ugarte e o resultado acaba de ser exibido em filme no Festival de Cinema de San Sebastian, que este ano arrancou com a nova secção Cinema e Gastronomia. Chama-se Mugaritz BSO (banda sonora original) e conjuga um menu com doze das mais famosas criações gastronómicas do cozinheiro e outras tantas músicas especificamente concebidas.
Uma espécie de moderna ópera ou sinfonia em doze actos. As imagens vão desde a criteriosa recolecção de plantas, flores e pétalas nos canteiros que envolvem o Mugaritz, ao ambiente laboratorial da cozinha. Há também viagens ao fundo do mar para a recolha de ouriços; aos Andes peruanos em busca dos sons dos ventos da região de onde vieram as batatas; ou ainda aos cafezais da Etiópia.
Misturar sensações
"O que se busca é misturar as sensações que desencadeiam, o lado sensorial, as texturas. Aquilo que procuramos é traduzir numa leitura musical. Conta o como, o porquê e a forma como concebemos todos os pratos.", assim enquadra Aduriz a experiência, enquanto o produtor, Juan Fernandez explica que "Ugarte trabalhou como tradutor [para a música] daquilo que intui como mais inspirador no trabalho de Aduriz".
Saboroso e harmónico, o resultado parece ter agradado àqueles que tiveram já o privilégio de vivenciar a novidade. E entre os comentários há um que o cozinheiro regista com particular agrado. O do neurologista António Damásio, que lhe terá dito que o mais significativo não é a criatividade de que dá mostras, mas aquela a que é capaz de induzir o comensal.
Ao que foi divulgado, o menu começa com "pedras comestíveis", que são afinal um preparado à base de batata envolto em finíssima argila branca, com toda a aparência de pedras. A batata é oriunda dos Andes e um músico peruano toca instrumento de vento feitos em argila. Para o "requeijão de leite de ovelha e feno temperado com folhas queimadas de feto" que se segue, Ugarte serviu sons gravando o latido de ovelha e a apanha de fetos que misturou com um instrumento típico dos pastores bascos. Tem tudo a ver.
A metáfora torna-se mesmo absoluta com o jogo de enganos proporcionado pelo carpaccio vegetal. Finas fatias de carne sangrenta, servidas com uma interpretação feminina da Eja mater de Vivaldi. Pura aparência. Não só aquilo que aparenta ser carne fresca não passa de melancia desidratada, como também a voz que parece ser de mulher é a de um conhecido contratenor.
O desafio prossegue com um dos pratos estrela de Aduriz: "Salada de verduras assadas e cruas, brotes e folhas silvestres, sementes e pétalas, com queijo emmental". Toda a candura da natureza é figurativamente exaltada com uma canção típica do próprio vale suíço de Emmental interpretada por um coro de crianças com os seus brinquedos. O timbre inocente da voz das crianças volta a ouvir-se para invocar a infância da vitela com a "carne assada em brasa de sarmentos, lâminas de tomilho, cinzas e sais", um dos partos cuja riqueza de sabores e texturas evidencia bem o lado criativo de Aduriz.
No capítulo dos doces, o cozinheiro junta também a banda musical produzindo sons da txalaparta (instrumento basco) onde se evoca o ambiente do campo que se associa ao "coração de maçã com borbulhas de beterraba". Os "pedaços de café sobre sopa fria de cacau, creme de chicória e pele de leite rural" foram mesmo buscar os sons e ritmos dos trabalhadores dos cafezais da Etiópia.
Num mundo cada vez mais mediatizado e ávido por novidades, o importante é marcar tendências e esta pode bem ser um dos novos caminhos. Há muito que os espanhóis, e os bascos em particular, assumiram a liderança mundial no sector e não é certamente por acaso que este projecto conta com apoios oficiais ao mais alto nível. A seguir ao filme virão também um livro e o disco de Mugaritz BSO.