Fugas - restaurantes e bares

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E foi assim que o gin conquistou Portugal

Por Alexandra Prado Coelho

Bares de gin a aparecer como cogumelos, uma revista dedicada exclusivamente à bebida, um evento, o GinTasting, quatro marcas nacionais a nascer num ano. O que aconteceu aos portugueses para, de repente, andarem todos com um copo--balão na mão a discutir o "perfect serve" e os seus botânicos preferidos? Miguel Somsen, dos Gin Lovers - que acabam de lançar a revista "Zest" e abrir o seu primeiro bar de gin oficial -, conta-nos como chegámos aqui.

Uma revista dedicada inteiramente ao gin? E há assim tanto para dizer? Não éramos os primeiros a ter esta reacção, e Miguel Somsen, jornalista e um dos fundadores do grupo Gin Lovers, estava mais do que preparado para ela. Sim, claro, há imenso a dizer, garante. 

Estamos sentados num final de tarde no bar Vestigius, no Cais do Sodré, em Lisboa, um local que nasceu ligado ao vinho, mas que foi o escolhido para os Gin Lovers lançarem o seu primeiro bar de gin oficial — ou seja, o primeiro com uma carta com assinatura do grupo, que inclui curiosos como Miguel, mas também especialistas como Cláudio Cruz (os restantes lovers são Carlos Alves, Frederico Patrício, Daniel Carvalho e José Lázaro). Daí a pouco vai começar a inauguração do Vestigius Wine & Gin, mas antes Miguel tem tempo para nos explicar como começou a loucura do gin em Portugal.

O que faz, afinal, com que em pouco mais de um ano tenha havido uma explosão do consumo e do interesse pelo gin em Portugal, de tal maneira que há bares de gin a nascer como cogumelos por todo o lado, os Gin Lovers lançaram um site, uma aplicação para mobile e agora a revista Zest, e nasceram já quatro marcas de gin portuguesas (e tudo indica que há uma quinta a caminho)?

Em primeiro lugar, temos que esclarecer o seguinte: a actual moda do gin é uma coisa da Península Ibérica. “Fora da Península Ibérica não se está a passar nada. Vais a França e ninguém está a beber gin”, diz Somsen. E se quisermos conhecer a história mesmo do princípio, temos que começar por Espanha. “A renovação do gin aconteceu lá”, explica.

“Estive agora em Espanha, fui à destilaria da Gin Mare, e andei pelos bares de Barcelona para perceber exactamente o que se passava. Claro que todos tinham histórias diferentes. Mas o representante da Gin Mare, por exemplo, disse-me que alguns dos grandes culpados tinham sido os chefs de cozinha. Ferran Adrià, no elBulli [o mítico restaurante que liderou a revolução gastronómica em Espanha e que está actualmente encerrado] decidiu que só ia usar Fever-Tree, o que foi uma revolução brutal, porque a água tónica que dominava era a Schweppes. O facto de o gin ter chegado às grandes cozinhas ajudou.”

Mas o gin não é uma bebida nova. “Sim, claro, o gin já existia, mas estava sistematicamente a ser mal servido em todo o lado.” Então James Bond tinha razão quando, já na década de 50 do século passado (consta que a primeira vez que usou a frase foi no livro Os Diamantes São Para Sempre, em 1956), insistia que queria o seu Dry Martini (gin e vermute) “shaken, not stirred”, ou seja, “agitado e não mexido”? Há formas certas de fazer estas coisas (mesmo que a de Bond possa ser polémica, mas não vamos entrar por aí), e nós andávamos esquecidos?

Falemos de uma coisa simples: o gin tónico. “Percebeu-se que era importante que se respeitasse aquilo que as pessoas tinham esquecido, que eram as medidas”, continua Somsen. “Todos os destilados têm que ter medidas, e há regras específicas, tal como nas receitas de comida.” No caso do gin é particularmente fácil decorar a fórmula: “um quarto de gin, três de tónica e mais nada. É assim que a bebida fica equilibrada.” Depois há, claro, tudo o resto que se acrescenta para criar gins “de assinatura”, mas já veremos isso mais à frente.

O que acontecia até há cerca de um ou dois anos em Portugal era absolutamente errado, sublinha. “O que se via, e ainda vê, nos bares é virarem a garrafa para dentro de um copo com três pedras de gelo dentro, e depois a água tónica fica quase toda dentro da garrafa porque não cabe no copo. É ridículo.” Foi por isso que apareceram os copos grandes e largos, de balão, que, segundo os actuais puristas do gin, devem ser cheios de gelo e levar depois o quarto de gin e três de tónica, para uma “combinação perfeita de sabores”. Importante: a bebida deve ser consumida em meia hora, para que o gelo não comece a derreter.

Mas ainda estávamos na história da revolução em Espanha. Como é que a moda chegou a Portugal? “Quando os espanhóis a trouxeram para cá. Foi a Taberna Moderna, do Luís Carballo, em Lisboa.” O primeiro número da revista Zest tem, aliás, um artigo dedicado a este espaço, ao qual chama “o berço do perfect serve em Portugal”, e ao galego Carballo, também fundador do bar Lisbonita.

É Carballo quem, em entrevista à Zest, recorda os inícios: “Abri o Lisbonita Gin Bar com 40 gins. No mercado havia oito. Informava-me sobre novidades ou marcas que já existiam, mas não aqui, e falava com o Jaime, da Garrafeira Nacional. Ele, um pouco a medo, mandava vir algumas, quatro ou cinco, eu comprava tudo, tal como prometia. Isto durou até que ele começou a acreditar. Depois havia o problema das tónicas, as Fever-Tree, Indi, 1724, essenciais. Hoje, para termos a noção, hábitters que são feitas para a Península Ibérica, como a de pepino.”

No Norte, figura fundamental foi Miguel Camões, que abriu a Gin House, no centro do Porto, depois o Gin Room, em Vila do Conde, e no final do ano passado lançou o seu próprio gin, o NAO.

E assim, em dois anos, os portugueses começaram a discutir coisas sobre as quais provavelmente nunca tinham ouvido falar antes, como a noção de perfect serve, ou a quantidade de especiarias e florais que cada marca de gin integra. “Em Portugal, ao contrário de outros países da Europa, o consumidor está muito à frente, aprendeu muito nos últimos dois anos, e muitas vezes sabe mais do que o barman. E nós, Gin Lovers, também contribuímos para preencher um bocadinho esse vazio de conhecimento através da nossa página do Facebook, do site, da aplicação, dos workshops que organizamos. Percebemos que as marcas tinham as garrafas disponíveis para pôr no mercado e o mercado estava completamente perdido porque não sabia como as ia vender. Começaram a aparecer 20, 40, 40, 100 marcas, e as pessoas perguntavam: por onde é que vou começar?”.

O aumento do consumo puxou o aumento da produção e em Espanha começaram a surgir várias marcas. Não foi preciso esperar muito para que o mesmo fenómeno acontecesse em Portugal. No dia em que conversámos com Miguel Somsen, estava a ser lançada uma nova marca de gin português — o Sharish Gin, que se anuncia como “lentamente destilado no Alentejo”. “É o quarto gin no mercado num ano”, lembra Somsen. “O Big Boss foi o primeiro, o NAO [envelhecido em barricas de vinho do Porto] apareceu ainda antes do final do ano passado, depois o Templus [apresentado como “o primeiro gin biológico da Península Ibérica”, produzido em Évora] e agora o Sharish, que vai pegar na maçã Bravo de Esmolfe. E sei que até ao Verão vai surgir uma quinta marca.”

Mas já passámos de meio do texto e ainda não respondemos à pergunta essencial: de que falamos quando falamos de gin? “O gin original é o trabalho do zimbro, das sementes de coentros, dos citrinos, base do álcool, base da água. Depois há a maceração e a destilação, e aí todos são diferentes.” Para elaborar receitas é importante saber conjugar os florais e especiarias presentes em cada gin com frutos ou outras especiarias que ali façam sentido.

“Chegamos à receita por tentativa e erro. Conhecendo os ingredientes de cada gin, mas acima de tudo provando e percebendo que há erros que não funcionam. No Gin Mare, por exemplo, há quem arrisque uma azeitona porque é um gin feito com base na azeitona [a arbequina, à qual se junta o alecrim, o tomilho, o manjericão, o cardamomo, os cítricos e o zimbro]. Isso para nós é uma receita de assinatura, o que não quer dizer que seja a única que funciona.”

Abrimos a carta de gins do Vestigius. De um lado está a receita clássica, geralmente a sugerida pela marca, do outro a receita com assinatura Gin Lovers. Dois exemplos: Hendrick’s clássico (pepino, pétalas de rosa e Shweppes Original); Hendrick’s “by Gin Lovers” (zest limão, salva, Fever-Tree Indian). E NAO clássico (zest laranja, café, 1724); NAO “by Gin Lovers” (amêndoa tostada, Schweppes original).

Importante é evitar o excesso de elementos, aquilo a que Somsen chama a “sopa” que algumas vezes encontramos dentro de um copo de gin. A água tónica é, claro, um elemento essencial, e por isso a Zest — que se assume como uma revista independente e que quer garantir o equilíbrio financeiro com as vendas (15 euros) e com os contratos de publicidade, também ligados ao site — tem, entre as suas secções, a análise de águas tónicas, comparando a doçura, o tamanho da bolha, a versatilidade, a citricidade e o gás.

Não há tanto para dizer sobre gin que justifique uma revista dedicada a ele? Parece que estávamos enganados. A Zest nasceu para provar que, quando se quer, este é um assunto inesgotável.

Em paralelo e ainda a provar a renovada força da bebida no país, assinale-se a realização no sábado, 10 de Maio, em Lisboa, no Pestana Palace, do Gin Tasting 2014, evento organizado pela Essência do Vinho e resumido como o "primeiro grande evento em Portugal dedicado ao mundo do gin". Segundo a organização estiveram presentes mais de três mil fãs do gin. No Outono, terá novas edições em Leiria e Porto.

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