Uma mota decorada com a bandeira italiana entra pelo palco do auditório do Kursaal, em San Sebastian, conduzida por um homem de calças pretas e jaleca branca. Atrás, alinhados, estão os principais actores do San Sebastian Gastronomika e, entre eles, alguns dos melhores cozinheiros de Espanha e de Itália — o país convidado do certame. Num primeiro momento, a mota (uma Vespa) parece não querer arrancar, mas isso não perturba o seu condutor, o chef pasteleiro catalão Christian Escribà, que ornamentou o ícone de duas rodas italiano com produtos de pastelaria. Este momento simbolizou muito do que se viu nestes dias de congresso: a tradição como fonte de inspiração para a modernidade, mas nem sempre pronta a ser transgredida.
Para agitar as águas nada melhor do que ter, logo a abrir, um transgressor nato como Massimo Bottura. Perante uma plateia com cerca de um milhar de espectadores — entre profissionais do sector, jornalistas e entusiastas —, o emblemático chef da Osteria Francescana, em Modena, lembrou as dificuldades por que passou nos primeiros tempos do restaurante, ao afrontar a tradição, não com nostalgia, mas de forma crítica. “Porque insistimos em repetir os erros das nossas avós uma e outra vez?”, questionava-se na altura. Bottura lembrou esses momentos enquanto apresentava, em primeira mão, Never Trust a Skinny Chef (Nunca Confies num Cozinheiro Italiano Magro), o livro que resume 28 anos do seu “caos” no restaurante — actualmente com 3 estrelas Michelin e considerado o terceiro melhor do mundo da lista do W50Best — de que é proprietário.
Todavia, ao optar por falar em castelhano (ou “italianol”) “por respeito”, Bottura perdeu parte da espontaneidade que lhe é característica. Ainda assim, esteve uns furos acima de muitos dos seus colegas italianos, que pareciam pouco preparados, sobretudo quando em comparação com a experiência e poder de atracção dos seus congéneres espanhóis, que falaram, cozinharam e comentaram os seus trabalhos com grande à vontade. Um dos que esteve bem foi Mauro Uliassi, o duas estrelas Michelin que gosta de descer à rua para partilhar o seu projecto de cozinha mais acessível: o Uliassi Street Good. O chef do restaurante Senigallia, na zona de Ancona, não só mostrou um vídeo bem produzido e divertido sobre a sua cozinha de rua, como fez chegar a uma parte do auditório um delicioso panino con porcheta. Outro dos chefs que destacou foi Niko Romito, do Reale, em Abruzzo — o mais recente três estrelas Michelin de Itália. Romito mostrou vários filmes em que se vê o seu trabalho meticuloso e a forma como extrai o máximo dos produtos, transformando-os de forma criativa sem adulterar o sabor.
Rasgos desconcertantes
A ideia de ter Itália como país convidado passava por mostrar um confronto entre as cozinhas do Norte e do Sul. Contudo, apesar das diferenças evidentes, mais do que um confronto regional partilharam-se estados de alma coincidentes em relação a um conflito permanente entre contemporaneidade e tradição. Assim, não foi de estranhar que vários chefs italianos apresentassem pratos de massa, ou de risoto, para exemplificar essa relação e o que as suas propostas trouxeram de diferente.
Mais à vontade com a questão andaram os chefs espanhóis, que exibiram técnicas, defenderam os produtos locais e evocaram memórias. Destaque para um momento de emoção na homenagem ao recentemente falecido Pedro Arregi, que durante 50 anos foi a alma do Elkano, o conhecido restaurante de Getaria, próximo de San Sebastian. Juan Mari Arzak chamou-lhe “o melhor assador de pescados do mundo”. O próprio Arzak subiria mais tarde ao palco, como habitualmente, com a sua filha Elena, também para relembrar igualmente uma efeméride: 25 anos de estrelas Michelin. Houve direito, como seria de esperar, a uma retrospectiva (em vídeo), em que foi interessante ver a evolução do restaurante e da sua cozinha ao longo desses anos. Porém, Arzak não se limitou às palavras de circunstância e, enquanto Elena apresentava as mais recentes criações, o emblemático chef basco intervinha. “Pode-se ser artesão ou empresário. Porém, o artesão deve procurar o dinheiro para continuar a fazer o que gosta, para poder continuar a sua paixão.” E, perante grande aplauso, rematou: “Há que ser artesão.”
Mas se o decano chef basco foi aplaudido com entusiasmo, Andoni Aduriz, outro artesão da região, seria recebido ao nível de um rock star. As suas apresentações são sempre muito esperadas, dada a sua forma de pensar “fora da caixa”. Como ninguém, o chef do Mugaritz estabeleceu de imediato empatia com o público. “O que significa bom ou saboroso?”, começou por questionar. “Se 95% dos nossos clientes vêm de fora do País Basco, para quem cozinhas? Não sabes. Então temos de mudar de registo. A verdadeira viagem faz-se com a memória, com perseverança, prova e erro, com troca de ideias.” E, antes de ser servido um dos seus pratos pelas mesas, concluiu: “Para nós, a experiência tem de ser isso. Um guião com rasgos desconcertantes.” Um desses “rasgos”, que apresentou no palco e que nos foi dado a provar, lembra um pedaço de relva arrancado de um campo de futebol — são germinados e cobrem uma espécie de pasta de sementes de sésamo. O resultado é verde, já o sorriso dos “ruminantes” é mais para o amarelo — valha-nos o contexto.
Fazendo a ponte entre a tradição e a modernidade, num tom mais consensual mas não menos vanguardista, esteve Joan Roca, do El Celler de Can Roca, em Girona, que falou mais de conceitos do que de pratos. “Renovar-repensar-reconhecer-recrear” foram as chaves de uma apresentação onde o chef daquele que é considerado o segundo melhor restaurante do mundo passou em revista uma série de aparelhos ganharam novas utilizações. “Fazemos uma homenagem às ferramentas antigas que nos permitem criar coisas novas, coisas mágicas”, disse. E num desses momentos de magia mostrou uma das sua criações mais recentes: um recipiente feito com um material termo-activo que se abre quando em contacto com um líquido quente. Mas o momento mais delicioso foi quando apresentou, já no final, um kit de cartão para montar, que reproduz o bar do primeiro restaurante da família. É neste suporte que serão apresentados os snacks com que os clientes serão brindados em breve. Serão interpretações actuais de alguns pintxos clássicos que a sua mãe fazia.
Um jantar memorável
É um hábito cada vez mais comum, por estes dias, a realização de jantares fora do programa oficial, aproveitando a presença da imprensa gastronómica mundial no congresso. Nesse âmbito, o chef Eneko Atxa voltou a destacar-se ao organizar, de novo, no seu restaurante Azurmendi (em Larrabetzu, próximo de Bilbau) um jantar que irá perdurar por muito tempo na memória dos presentes. Depois de em 2013 ter convidado Quique Dacosta, desta vez o convite foi endereçado a Jordi Roca e a Ángel León. E se o mais novo do irmãos Roca acabaria por passar mais despercebido (couberam-lhe as duas discretas sobremesas finais), Atxa e Léon estiveram em sintonia total, não se notando as diferenças de estatuto que lhes são dadas pelo guia Michelin (onde o anfitrião tem três estrelas enquanto o seu convidado apenas uma). Os primeiros aperitivos foram servidos ainda na horta — um mostruário de espécies vegetais de origem local. Depois houve um segundo andamento, com maissnacks, no jardim interior, seguido das primeiras entradas, degustadas no balcão da impressionante cozinha do restaurante. Por fim, já na sala foram servidas as restantes propostas. Ao todo foram 21 criações de grande nível e inspiração, num menu equilibrado e surpreendentemente leve — tendo em conta que os protagonistas são autores de cozinhas de muita personalidade e sabores bem marcados.
Mas o Gastronomika esta longe de se resumir ao auditório principal do Kursaal ou a momentos off únicos como este. Os vinhos estiveram igualmente em destaque, tal como toda uma área de mercado com quase uma centena de expositores. No exterior foi montada uma pizzaria com forno a lenha, que contou com a presença de alguns dos principais pizzaiolos de Itália. “Pizza não é fast food”, dizia um deles com a mão na massa. É que se a tradição pode ser um entrave a quem quer ir mais longe, ela não deixa de ser o garante de uma cultura e de um futuro. Contudo, isso não implica que não possa ser discutida e até mesmo questionada. Se, como se viu por estes dias, a cozinha espanhola conseguiu dar essa volta com grande à vontade, sem perder identidade, em Itália o processo ainda vai demorar algum tempo a digerir.
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A tradição já não é o que era. Ou é?