Fugas - restaurantes e bares

  • O mapa luso das estrelas Michelin
    O mapa luso das estrelas Michelin /Infografia PÚBLICO
  • José Avillez, Belcanto
    José Avillez, Belcanto Miguel Manso
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    Belcanto Miguel Manso
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    Belcanto Paulo Barata
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    Leonel Vieira, São Gabriel Enric Vives-Rubio
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    São Gabriel Vasco Cèlio
  • São Gabriel
    São Gabriel Vasco Cèlio
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    Pedro Lemos Regina Coelho
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    Pedro Lemos Regina Coelho
  • Pedro Lemos
    Pedro Lemos Paulo Pimenta

Michelin 2015: As novas estrelas que iluminam a cozinha portuguesa

Por Alexandra Prado Coelho José Augusto Moreira

José Avillez conquistou a segunda para o Belcanto, Leonel Pereira recuperou a que o São Gabriel tinha perdido e Pedro Lemos deu ao Porto a estrela que há muito tinha fugido da cidade. A gastronomia lusa nunca esteve tão brilhante: são agora 17 os pontinhos de luz espalhados pelo país. Bom proveito!

Michelin 2015: Os chefs que mantiveram as estrelas a brilhar
Guia Michelin, uma longa história de rigor, exigência e credibilidade

 

José Avillez, Belcanto
“Ser confortável e trazer alguma emoção, isso é um grande desafio"

Quando aterrou no aeroporto de Lisboa, às 7h30 da manhã de quinta-feira, vindo de Marbella onde, ao lado do seu subchefe David Jesus, tinha acabado de receber a segunda estrela Michelin para o Belcanto, José Avillez foi recebido pela equipa em peso. “Estavam de directa, ainda de avental, a gritar ‘Ninguém pára o Belcanto’”, recorda o chef, sentado num cadeirão do restaurante do Chiado, ainda a recuperar do vendaval dos últimos dias.

A euforia da equipa é compreensível. O Belcanto fez história: pela primeira vez, um restaurante lisboeta, chefiado por um português, conquista duas estrelas do exigente guia vermelho. As primeiras notícias diziam que era a primeira vez que tal acontecia em Portugal, mas a consulta a guias antigos permite ver que o restaurante O Escondidinho, no Porto, já teve direito a duas estrelas, em 1936, embora num contexto de atribuição diferente do actual.

Mas o facto é que se pensarmos no pós-guerra (e já temos um longo período em que pensar) o feito do Belcanto é único. E ouvindo Avillez falar percebemos de onde vem a convicção da equipa de que “ninguém pára o Belcanto”. “Há cerca de um ano tive uma conversa com o David [Jesus] em que eu dizia ‘Sei o que vai ser a nossa cozinha daqui a uns tempos, fecho os olhos e imagino os pratos, há coisas que já imagino mas que ainda não consigo fazer’”, conta.

Tudo tem a ver com um caminho que já começa a desenhar-se com a carta que está actualmente no Belcanto. “Mudámos o menu em 60 ou 70% há um mês. E mudámos antes de saber que íamos ganhar a segunda estrela”, explica o chef. “Por isso, estes pratos novos ainda não foram provados pelos inspectores. Há uma evolução que é nossa, que não olha especialmente para as estrelas, olha para o nosso crescimento na cozinha.” Mas é, acredita, esse crescimento sustentado, essa maturidade, que justifica que hoje seja um restaurante de duas estrelas.

E passa por onde, esse caminho? Durante a conversa com a Fugas, há uma palavra que Avillez repete muitas vezes: sabor. “Mantendo o nível técnico alto, e com técnicas inovadoras, eu diria que é tudo muito guloso, é o sabor, o sabor, o sabor.” Diz que na cozinha actual “há por vezes um lado estético muito trabalhado, mas depois o prato não sabe a nada”. E frisa: “Não foi esse o nosso caminho.” O que busca é a “cozinha de conforto das nossas avós mas num restaurante de alta cozinha — ser confortável e trazer alguma emoção, isso é um grande desafio.”

“Até é possível fazer-se histórias com um prato, mas aquilo tem que ser muito bom. Quando me falam de a cozinha ser arte, acho que é uma expressão artística, mas é a arte do sabor, das texturas. Têm que ser os nossos sentidos que revelam se é arte ou não. É só arte porque temos um conceito maravilhoso? É pouco.”

Para percebermos do que falamos, nada melhor do que descrever os pratos, que é algo que Avillez faz com evidente prazer. “Temos um prato que é um carabineiro com puré de castanhas, funcho, um bocadinho de laranja e cardamomo, o molho das cabeças dos carabineiros, e depois tem, por cima, uma pinha verde ralada. Em Maio, na altura das pinhas verdes, apanhámos uma data delas e congelámos para termos pinhas para ralar.”

A ideia da pinha pode até parecer uma influência nórdica, mas neste caso é mesmo “100% português”, explica. “Para mim, é a combinação do mar com o pinhal, muitas praias portuguesas estão ao pé do pinhal, estamos a olhar para o mar e temos aquele cheiro das pinhas, da resina.” Como acontece em pratos anteriores da sua autoria, também este nasce de uma paisagem. “As pessoas comem-no e sentem-se completamente em casa, são sabores que conhecem.” E, afinal, não é assim tão distante da própria cozinha portuguesa. “Há receitas tradicionais em que se faz uma marinada com cabrito e se põem lá dentro pinhas, para dar aquela profundidade do aroma do mato.”

Há uns tempos, noutra conversa com a Fugas, Avillez tinha falado das viagens dos portugueses pelo mundo e da forma como esse cruzamento de culturas e comidas podia influenciar a cozinha contemporânea. Sorri quando recorda essa conversa. “Ultimamente, comecei a olhar cada vez mais para dentro [do país] e a perceber que há tanto, tanto para fazer.” Esteve, por exemplo, uma semana e meia no Algarve, e imediatamente surgiram novas ideias ligadas aos sabores e produtos algarvios, como o xarém. Perguntam-lhe muitas vezes em entrevistas de onde vêm essas ideias, e ele tem cada vez mais dificuldade em explicar. “Às vezes, há uns momentos quase transcendentes em que surge uma ideia.

Quando estou assim em modo de criatividade começo a sentir-me um super-homem”, afirma, com uma gargalhada. Aconteceu por exemplo com o prato que nos descreve em seguida.

Puxar pelo país
“Estou fora do restaurante, penso neste prato, ligo ao David e digo-lhe para experimentar. São lagostins salteados com tutano emulsionado com óleo de noz, tendão de vitela e espargos brancos. O prato ficou 95% afinado ao telefone, depois quando cheguei decidi apenas cortar os espargos de outra maneira. É dos pratos com que as pessoas mais se maravilham. E nasceu, nem sei explicar como.”

Esta tendência de cozinha muito centrada no sabor tem vindo a acentuar-se e terá havido um prato marcante nesse processo: a sua versão do cozido à portuguesa. “É talvez o primeiro desta nova linha, que tinha aparecido isolado, e depois construímos à volta dele uma família de outros pratos.”

Essencial para esta exploração de sabores — da qual as técnicas de vanguarda não estão ausentes, mas que tem uma grande base de técnicas clássicas — são os caldos. “Hoje em dia temos três ou quatro caldos de preparação base que são muito importantes. Um é o caldo de rancho, como lhe chamamos. Estava no Algarve e escrevi no telefone ‘Dez quilos de mãozinhas de vitela, dois frangos, um quilo de grão, cebolas, alhos, chouriço’, já nem sei bem, mas sei que cheguei cá e disse ‘Vamos experimentar este caldo’. Usamos desde a água de cozer os percebes à dos caracóis, ou das caras de bacalhau, temos uns caldos mais neutros, para servirem de base, outros com mais sabor. Fizemos, por exemplo, um gaspacho de lavagante com a água do mexilhão, que tinha sabor a mar. Há aqui um trabalho de ir buscar a base e perceber que o sabor não se consegue assim simplesmente, que é mais complexo. Claro que se eu tiver um tomate bom e lhe puser um bocadinho de sal, o sabor está lá. Mas na alta cozinha não chega, temos que ir procurar a essência disso.”

São pratos com muitos elementos, reconhece, mas é precisamente o que lhe interessa. “Há cozinhas muito simples, e eu adoro, e já tentei até conduzir a minha cozinha para esse lado, mas não sou eu, eu sou mesmo complicado”, diz, sorrindo. 

E a segunda estrela, vai mudar o quê neste caminho? É importante, diz Avillez, aperfeiçoar o que já existe, trabalhar melhor, e de forma mais eficaz, na cozinha, conseguir corrigir pequenos erros que por vezes só o chef nota. “É muito importante esse lado da eficácia, e a segunda estrela vai trazer mais isso” a uma equipa que é já de mais de 30 pessoas (22 na cozinha e 10 na sala) para 45 lugares.

Acredita que a distinção vai também ajudar a puxar pelo país, e arrisca mesmo dizer que “o ano passado começou uma revolução” na forma como o guia Michelin encara Portugal. Não concorda com os que dizem que o país poderia ter mais uma ou duas dezenas de restaurantes com estrela, mas acha que há pelo menos “mais dois ou três” que já mereciam uma estrela. Mas lembra que é preciso consistência. “Quantos cozinheiros não vão para um sítio e ficam lá quatro meses e saem? Têm que entrar, fazer, construir, e logo se vê.” E está convencido de que, com a sua chegada às duas estrelas, em breve um dos outros dois restaurantes duplamente estrelados (os algarvios Vila Joya e o Ocean, do Vila Vita Parc) poderá chegar às três.

A meio da nossa conversa, uma senhora que estava sentada a uma das mesas do Belcanto a almoçar aproximou-se para se despedir e, pedindo desculpa pela interrupção, perguntou a Avillez se lhe podia dar um abraço. O chef abraçou-a e voltou para perto de nós: “Não conhecia esta senhora e ela acaba de me dar um abraço. É espanhola, nunca tinha vindo ao Belcanto, descobriu o restaurante na Internet, na quarta-feira à noite quando já tinha a reserva feita, ouviu a notícia das estrelas, diz que até chorou. E agora disse-me que adorou. É isto que me faz levantar de manhã. As estrelas fazem-nos ter mais gente, mas no fundo são o reflexo destas pessoas que saem daqui contentes.”

Belcanto, Largo de São Carlos, 10.1200-410 Lisboa. Tel.: 213420607. 
Horário: De terça a sábado, das 12h30 às 15h e das 19h30 às 23h. Preço médio: 55€
belcanto.pt


Leonel Pereira, São Gabriel
“A exigência que tenho para o São Gabriel, não a vou medir por estrelas”

A reconquista da estrela Michelin para o restaurante de Almancil foi “o melhor presente que podia dar” à equipa, diz Leonel Pereira. Mas não altera em nada o plano “muito duro” de trabalho que já tinha traçado. Para 2015 promete “muita criatividade” e uma cozinha que é cada vez mais aquela com que há muito sonhava.

Em Março passado, Leonel Pereira deu a provar à sua equipa uma toranja. Da primeira vez ninguém gostou. “O que é que o chef quer fazer com isto?, perguntaram.” Leonel mandou vir um carregamento de toranjas e decidiu que todos os dias durante duas semanas todos iriam comer meia toranja quando chegassem de manhã. Pouco a pouco foram aprendendo o que era aquele sabor amargo, aquela acidez. O resultado foi a criação de um “prato amargo” à base de endívia e toranja — e que “os clientes adoraram”.

A história foi contada à Fugas por Leonel Pereira durante uma passagem por Lisboa, onde participou no júri do Concurso do Chefe Cozinheiro do Ano, dois dias depois de ter recebido a notícia de que o seu restaurante, o São Gabriel, em Almancil, Algarve, reconquistara a estrela Michelin perdida no ano passado.

E é uma história exemplar do método de trabalho do chef algarvio. Em primeiro lugar, pela relação com a equipa, com a qual trabalha numa colaboração muito próxima, em segundo pela vontade de experimentar e jogar com sabores inesperados, e em terceiro pela coragem de arriscar apresentar aos clientes pratos menos óbvios. Foi esta a filosofia que trouxe para o São Gabriel quando chegou, há dois anos, vindo do lisboeta Panorama, no Hotel Sheraton.

O São Gabriel (restaurante que já existia há muitos anos mas que acabara de mudar de proprietário) foi uma oportunidade única que entrou na vida de Leonel Pereira — e ele agarrou-a decidido a dar tudo de si. “Quando eu estava no meu projecto anterior e as pessoas diziam que gostavam do meu trabalho e que me achavam merecedor disto ou daquilo, eu agradecia mas pensava para com os meus botões ‘Eu posso dar mais, mas como é que provo que posso dar mais?’. Era uma mágoa que vivia comigo”, confessa.

Por isso, no primeiro ano, 2013, o projecto do São Gabriel passou sobretudo por “tentar encontrar uma identidade” que procurava há alguns anos, libertar-se “dos fantasmas” para se encontrar, “para encontrar aquilo com que sonhava”. Começou com algumas cautelas, avaliando as reacções e medindo o grau de satisfação dos clientes. E percebeu que este era muito elevado e que todos saíam com vontade de voltar. “Isso deu-me força para ter em 2014 uma liberdade maior na minha comida, uma autenticidade muito maior.”

O São Gabriel encerra durante os meses de Inverno (neste momento está encerrado, reabrindo no dia 1 de Março), e no final de 2013 chegou a má notícia, que surpreendeu todos os que acompanhavam o trabalho de Leonel Pereira: o guia Michelin tirava a estrela ao restaurante de Almancil. Veio depois a perceber-se que isso acontece quando um restaurante muda de chef e de proprietário o que, para os inspectores da Michelin, é revelador de uma instabilidade que o guia não aprecia.

Cozinheiro, chef não

Hoje, Leonel encara a perda da estrela até de uma forma positiva. “Foi o melhor que nos podia ter acontecido”, diz. “Eu não me identificava com uma estrela que não tinha sido ganha por mim. E mesmo sabendo que não foi pelo meu trabalho que a perdemos, porque estou absolutamente certo que em 2013 não tive visitas do guia, houve uma revolta, porque a equipa ficou triste.” Reuniu-se com os seus colaboradores para discutirem o assunto. “Demos a cara pelo que tinha acontecido, não nos justificámos a ninguém, e eu, que queria dar-lhes força, vi que tinha uma equipa pronta a dar-me força a mim: ‘Chef, vamos vencer, vamos provar que somos melhores’. Foi bom ouvir isso.”

Recuperar a estrela este ano “foi o melhor presente que lhes podia dar”. Mas, garante, não estava à espera que acontecesse tão cedo. “Vou ser sincero: tinha esperança de ganhar a estrela em 2015. Se isso não acontecesse ia ficar muito triste, com uma mágoa profunda. O plano, muito duro, que fiz para o próximo ano englobava a ideia de conseguirmos de volta a estrela. Até pelo investimento do patrão, que inicialmente foi de três milhões de euros, mais 150 mil no ano passado, o que nos dias de hoje não é fácil.”

E assim, em Março de 2014, Leonel reabriu o São Gabriel “mais livre, com muita força, e algumas provocações, no bom sentido”. Apresentou um menu de degustação de 16 pratos e os clientes, que, exceptuando no mês de Agosto são, na maioria, estrangeiros, aderiram imediatamente. “Nunca ouvi tantas vezes a palavra ‘amazing’”. Sentiu que estava no bom caminho.

Começou a trabalhar áreas como a da calcificação dos legumes (“temos um mundo grande para explorar aí”), a fazer experiências com fermentados (“mas com muita inteligência, porque não somos um país com tradição de fermentações”), a desenvolver “sobremesas que parecem entradas e entradas que parecem sobremesas”.

No segundo menu que fez este ano foi ainda mais longe. “É, talvez, um menu com uma identidade um pouco mais algarvia, com algumas ideias à volta do carapau alimado, do xarém, mas menos complicado que o primeiro, com menos elementos”. Certos pratos, como as vieiras com requeijão de ovelha e maçã injectada com beterraba ou o risotto de lavagante, “tornaram-se best-sellers” e já não saem da carta.

O plano para 2015 foi traçado numa reunião com a equipa antes da notícia da estrela Michelin, e, assegura o chef, não será alterado por causa dela. “Para 2015 quero menos ingredientes dentro do prato. Não quero pôr uma cenoura e uma batata e dizer que é a melhor coisa do mundo, como já muita gente faz, mas quero pôr esses produtos ao mais alto nível.” Um dos projectos é trabalhar mais com carvão. “Vamos ter um grelhador e usar coisas grelhadas, com sabor a fumo, desde as sobremesas às entradas. Durante anos e anos o carvão foi posto de lado, era vergonhoso cozinhar com carvão, mas em 2015 vão aparecer coisas nas brasas.”

Ideias não lhe faltam. Diz que tem escritas mais de 130 “que vão ser coisas fantásticas”. Vai trabalhar sobremesas monocromáticas, e explorar sabores “que as pessoas têm o hábito de dizer que não gostam”, como a toranja, o aipo, o nabo. E se acredita profundamente que “a cozinha é criatividade”, então toda a sua equipa vai ser desafiada a apresentar ideias e a criar. “É possível que comecem a aparecer na carta detalhes de alguns deles. Os meus subchefes já mostraram bastante poder criativo este ano, e já aproveitei várias coisas deles.”

A maior parte dos produtos que utiliza são portugueses, mas não é fundamentalista nesse ponto, porque se o melhor produto para determinado prato for estrangeiro, então é esse que vai escolher. Quanto a fazer ou não “cozinha portuguesa”, tem que pensar nos 98% de clientes estrangeiros. “Se estivesse num restaurante em Lisboa usava mais a recriação de receitas tradicionais e regionais portuguesas. No São Gabriel, pego no produto português e elevo-o a um nível internacional.”

Há depois “cerca de 10% que é a identidade portuguesa, o sabor português, mas é preciso levar os turistas a provar pouco a pouco, e explicar-lhes, porque são pratos que exigem uma explicação.” Está muito satisfeito, por exemplo, com a recriação de uma chanfana que fez para o último menu, e tem estado a trabalhar também à volta do xarém algarvio, “que é das coisas mais difíceis para os estrangeiros”.

Leonel não tem papas na língua. Há seis meses, desde o Congresso dos Cozinheiros, que deixou de assinar como chef. “Sou um forte crítico do mediatismo que se vive na cozinha hoje. Passei a assinar ‘Leonel Pereira, cozinheiro’ porque o conceito de chef banalizou-se de tal maneira que tenho vergonha de dizer que sou chef.” Não poupa também os “programas medíocres de televisão que estão a estragar uma geração de pessoas formadas noutras áreas e que largam tudo para vir para a cozinha”. É preciso um programa “que mostre às pessoas o que é realmente a vida por trás dos fogões”, caso contrário “elas caem numa cozinha e fogem ao fim de uma semana”.

Além disso, não é homem para se deixar deslumbrar. “A estrela é um reconhecimento. Mas não quero viver a pensar que vou trabalhar para a primeira ou para a segunda. Vou trabalhar para ser o melhor, claramente. Se isso me traz uma estrela, duas, ou não traz, a minha consciência está tranquila. É bom ser reconhecido. Mas também é bom estarmos a trabalhar com objectivos próprios, sem ser para prémios ou para exposição mediática. A exigência que tenho para o São Gabriel, não a vou medir por estrelas.”

São Gabriel. Estrada Vale do Lobo - Quinta do Lago. Almancil 8135-106 Loulé. Tel.: 289394521
Horário: Encerrado para férias, reabre em Março 2015. Preço médio: 75€
www.sao-gabriel.com

Pedro Lemos
“Dar de comer a alguém é fazer uma pessoa feliz”

“Projectos para o futuro? Olha... a reforma  antecipada!” É com uma aliviadora gargalhada que Pedro Lemos vinca o tom de brincadeira com que responde à mulher. Joana, que por estes dias funciona como uma espécie de assistente e secretária, procura despachar mais uma das entrevistas por email que surgem de todo o lado, mas a tarefa não está fácil. “Hoje já não consigo responder a mais nada”, remata o chef, visivelmente cansado, enquanto procura alinhar na banca da cozinha algumas pastas para poder fazer as habituais encomendas de peixe, carne e legumes.

“Isto tem sido um caos, mas pode ser que agora a estrela ilumine o meu caminho”, volta a brincar Pedro Lemos, numa reveladora expressão daquilo que têm sido os seus dias desde que, a meio da semana passada, foi anunciada a atribuição da estrela Michelin para o seu restaurante: um misto de satisfação e cansaço, de alegria e esforço, de comemoração e fadiga.

“Mas vale a pena quando o trabalho é reconhecido e sobretudo quando vemos o cliente satisfeito. Que isso é o que verdadeiramente nos alegra e é o mais importante”, destaca o jovem chef, que há cinco anos se lançou na aventura de abrir um restaurante de assinatura na exclusiva zona da Foz Velha, no Porto. Uma casa “que concilia o conforto e o glamour e que apela ao convívio”, com “uma cozinha que não pretende o espectáculo, mas com ligação ao povo e à nossa cultura”, e sempre fiel ao princípio de que “dar de comer a alguém é fazer uma pessoa feliz”, tal como então se anunciava.

À felicidade dos clientes, o chef junta agora a sua satisfação e orgulho pelo reconhecimento da crítica mais exigente e prestigiada, mas assegura que nada o vai fazer alterar uma linha no rumo que estava traçado. Mantém-se o fecho para férias no mês de Janeiro e com isso as mudanças previstas, “para que o cliente se sinta mais confortável e esteja ainda mais no centro das atenções”. Em vez das duas salas até agora em funcionamento, o piso de entrada passará a funcionar exclusivamente como zona de recepção, bar e convívio, enquanto todo o andar de cima será ocupado apenas para as refeições.  

“A ideia é que os clientes possam desfrutar mais da casa e virem a qualquer hora e sem compromisso específico. Seja para almoço ou jantar, seja só para um petisco, degustar um vinho ou simplesmente conviver com amigos. É para eles que a casa deve funcionar”, explica Pedro Lemos, enquanto mostra com evidente orgulho as obras que já decorrem para a instalação de uma horta orgânica — no terraço ao lado da esplanada do primeiro piso e de onde espera vir a colher todos os ingredientes para um prato muito especial. “É isto. Estava já tudo previsto e nada se vai alterar. Nem os preços!”

E isto mesmo que as reservas cheguem agora a todo o momento e as marcações se comecem a alongar no tempo. Até no bar da Baixa, o Stash, que o chef e a mulher abriram precisamente no dia em que foi anunciada a estrela Michelin, a procura tem sido intensa. Com casa cheia a toda a hora e uma enorme curiosidade e expectativa.

Manter estilo e conceito

Apesar do firme propósito de manter o rumo, o estilo e a filosofia do conceito de casa e de cozinha, Pedro Lemos reconhece que há agora uma maior receptividade e expectativa, à qual é preciso corresponder. O fundamental é manter o critério e qualidade na escolha dos produtos, criatividade, técnica e sofisticação na elaboração dos pratos, e a expressão da cultura e sabores tradicionais naquilo que leva à mesa.

É por tudo isto que quando lhe pedimos que escolha o prato com que mais se identifique, que melhor expresse o seu estilo de cozinha, logo aponta peixe do nosso mar na companhia de produtos e cozinhados dos mais populares da nossa cultura culinária. Tudo simples e natural, o que, como é sabido, é sempre o mais difícil e exigente.

“Salmonete, choco, tomate, ervilhas e molho de assado”, assim se chama o prato no qual combina a delicadeza do peixe fresco, os produtos da horta, os aromas da grelha e os sabores complexos do guisado, que bem sintetizam a nossa cultura gastronómica. Tudo da forma mais simples e linear, para um resultado de grande elegância e ao mesmo tempo complexo e sofisticado.

Além da técnica e conhecimento, é nos pormenores que está toda a diferença. O cozinheiro explica que o salmonete tem que ser pescado à linha: “O de arrasto tem o mesmo sabor, mas como o peixe leva um bocado de pancada os aspecto já não é o mesmo.” Depois há o choco, cuja tinta dá o toque iodado e de maresia, sendo preparado em duas texturas. Num guisadinho, com tomate e ervilhas, que é a técnica mais básica e comum da nossa gastronomia, e também grelhado, que é a forma mais comum e tradicional de se consumir o peixe fresco. Há também o molho do assado, uma mini quenelle de puré de azeitonas verdes e umas pontinhas de salicórnia, os espargos do mar e raspas de limão, que acentuam a frescura e acidez. À finesse e delicadeza da conjugação de sabores e texturas, Pedro Lemos associa um apurado sentido estético, que torna o prato insinuante, leve e agradável à vista. E é sabido que o olhos também comem.

E porquê este prato? “Junta o guisadinho, com alho, cebola e o tomate, que é a base da nossa culinária. Também o peixe fresco único da nossa costa e os aromas e sensações do calor e carvão, que é como os portugueses mais gostam de consumir o peixe”, sustenta Pedro Lemos, explicando ainda que a forma como é tostada a pele do salmonete proporciona a sensação do assado, as ervilhas conferem a componente de textura e alguma doçura, e a salicórnia, as azeitonas e o limão a componente de frescura e acidez. “Com a tinta do choco é como colocar o animal no seu habitat”, conclui o chef, referindo também que esta “é uma criação que está ainda em evolução” e, por isso, revela também o seu estilo e concepção de cozinha.

“Numa primeira fase já levou caviar, mas depois pareceu-me que com o salmonete já havia a necessária intensidade do mar; depois o choco entrava apenas no guisado mas com a grelha temos aquela componente típica do fogo”, descreve, explicando que um prato se deve manter enquanto a sua elaboração lhe desperta vontade de evolução e progresso. “Quando olho para o prato e não vislumbro evolução, está no fim, terminou o seu ciclo de vida”, conclui.

Nesta sua criação, Pedro Lemos vê também a tendência para evitar os hidratos de carbono. “Tem as ervilhas, naturais, descascadas à mão, mas podiam também ser favas ou outro produto de temporada”, acrescenta.

Outra das características de Pedro Lemos é a atenção que dá aos vinhos na sua relação com os pratos. As escolhas são feitas em articulação com o sommelier, Pedro Ferreira, que ponta para duas ou três opções face às notas fornecidas pelo chef: “O vinho pode dar sempre uma boa ajuda. Por vezes um prato pode até adaptar-se às estações do ano só com a mudança do vinho.”

Apesar da estrela, do natural aumento da procura e do aumento da afluência de clientes estrangeiros — que, em todo o caso, vem notando já há mais de um ano —, o chef promete manter-se fiel ao estilo e conceito de sempre. “A diferença é que somos um restaurante pequeno e pobre”, ironiza, para sublinhar a pequena estrutura com uma equipa de nove pessoas e sem qualquer estrutura de apoio. “Aqui sou eu que faço tudo”, conclui.

Pedro Lemos. Rua Padre Luís Cabral, 974 (Foz Velha). 4150-459 Porto
Horário: Das 12h30 às 15h e das 19h30 às 23h. Fecha aos domingos.
Menus: Três, cinco ou sete pratos, por 55, 70 e 90€, respectivamente.

www.pedrolemos.net

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