Fugas - restaurantes e bares

José Sarmento Matos

Saborear e digerir a “gastronomia” viral

Por Fortunato da Câmara

Listas, guias, críticas, blogues, redes sociais, cozinheiros, restaurantes e assessorias são peças de um puzzle complexo à disposição dos amantes de comida. Como se “guiam” as escolhas e num ápice o cliente passa de “guru” a “terrorista”… virtual – apenas por ter uma opinião menos “consensual”.

A vaga de popularidade que restaurantes, chefs de cozinha, festivais gastronómicos e blogues de culinária ganharam nos últimos anos alterou a forma como os temas à volta da “comida” são discutidos e consumidos. No caso dos restaurantes, o acesso massivo à comunicação tem mudado a forma como se captam novos clientes – antes a notoriedade chegava através da crítica ou dos sempre polémicos guias, com as visitas aleatórias dos inspectores e os seus critérios próprios e para muitos insondáveis.

Com as novas tecnologias, esse paradigma mudou e são os restaurantes ou os cozinheiros que constroem a sua própria divulgação e popularidade. O sucesso pode ser quase tão instantâneo como juntar água. É o que vem fazendo desde 2010 uma publicação inglesa da indústria da restauração ao associar-se a uma marca internacional de águas para criar uma lista dos “melhores restaurantes do mundo”.    

A classificação anual dos World’s 50 Best Restaurants é uma gigantesca acção de promoção que faz a seriação de um restrito universo de 100 restaurantes para destacar apenas os 50 primeiros. “É uma iniciativa com uma força mediática muito grande, que não é comparável à de nenhum outro evento”, afirmava Roser Torras, a nova responsável da região ibérica da lista em entrevista ao PÚBLICO durante uma deslocação a Portugal, no passado Verão, para avaliar a melhor forma de promover alguns restaurantes portugueses, mas também para sensibilizar os votantes portugueses que ela própria selecciona. “Eu continuo a achar que hoje a melhor cozinha do mundo é a dos [irmãos] Roca e que, se temos na Península Ibérica um restaurante que está em segundo lugar, é importante que o apoiemos, para que volte a ser primeiro, porque é o que tem mais possibilidade de o conseguir”, afirmava, referindo-se ao restaurante El Celler de Can Roca, que no ano passado perdeu o primeiro lugar na classificação.

Roser Torras é proprietária do Grupo Gsr, uma das maiores agências espanholas de comunicação na área da gastronomia que organiza eventos com os principais chefs de cozinha da actualidade e que tem uma das marcas da empresa que patrocina a lista na sua vasta carteira de clientes. Tem a seu cargo a escolha dos 35 elementos ibéricos do painel secreto (inicialmente era público) de cerca de 900 jurados que é composto por cozinheiros, empresários da restauração, gourmets e jornalistas. Um formato de eleição peculiar que mistura pessoas interessadas no negócio da restauração com clientes e jornalistas.

Outra forma de um espaço ou cozinheiro se promover são as assessorias de imprensa, que ajudam a publicitar restaurantes através da organização de eventos que são divulgados na comunicação social e em diversas plataformas recorrendo à notoriedade de alguns blogues. Joana Pratas, licenciada em comunicação empresarial, tem na sua carteira de clientes produtores de vinho e os restaurantes Narcissus em Vila Viçosa (Hotel Marmóris), e Cais da Vila, em Vila Real, e explica-nos a sua função: “Eu trabalho um bocadinho no sentido de tentar fazer com que saiam notícias”. Organiza press trips para jornalistas e bloggers para dar visibilidade aos seus clientes e ultrapassar as restrições orçamentais da imprensa: “Antes os jornais iam à procura e descobriam, mas hoje em dia nós é que temos de ter isso tudo organizado.” Sabe que nem todos escrevem sobre os eventos organizados: “Digo sempre aos meus clientes que se eu tiver dez jornalistas numa press trip não vão sair dez notícias.” No entanto, revela que tem de haver um retorno mínimo de notoriedade para justificar o investimento que é feito.

Entre os participantes nestas acções de promoção estão os bloggers, cuja relevância se mede pelo número de visitas diárias do blogue que têm. Um desses exemplos é o Cinco Quartos de Laranja, blogue da autoria de Isabel Zibaia Rafael com milhares de visitas diárias onde são publicadas receitas, eventos em que participa e relatos de visitas a restaurantes. A blogger faz desde logo a ressalva de que não pretende fazer crítica, mas apenas contar a sua experiência em restaurantes, e recorda as diferenças desde que se iniciou na blogosfera, em 2006: 

“Quando eu comecei, as refeições eram todas pagas por mim, agora já não. Umas são e outras não, mas eu tento passar essa informação aos leitores.” Os convites são espontâneos e ocasionais por parte dos assessores de imprensa, embora por vezes também sejam do seu interesse. “Para mim um dos marcos foi um jantar no Ocean, no Algarve, foi um momento importante”, recorda, a propósito da visita a um restaurante com duas estrelas Michelin.

Isabel não consegue quantificar todos os convites que já recebeu, e sublinha que nem sempre escreve sobre os locais visitados, nem se sente pressionada a fazê-lo. No entanto, Joana Pratas refere a importância de convidar bloggers para eventos, além dos jornalistas. “Os blogues são cada vez mais importantes por causa da amplificação nas redes sociais”, diz. E acrescenta que no futuro podem até ganhar mais peso do que a imprensa.

Se por um lado toda esta visibilidade dada por sitesbloggers e redes sociais tem vantagens para os negócios à volta da restauração, também surgem exemplos menos positivos dessa intensa exposição pública. Em Julho, o New York Times publicou um artigo onde reflectia acerca da obsessão que alguns cozinheiros têm em exibir pratos visualmente apelativos para que os clientes os fotografem e partilhem nas redes sociais, mas que por vezes não sabem tão bem quanto aparentam. 

Em contraponto, alguns cozinheiros norte-americanos e franceses anunciaram que pretendem impedir que os pratos sejam fotografados alegando direitos de imagem e o incómodo que o uso do flash das máquinas provoca a outros clientes, além de perturbar a própria degustação do prato. 

Em França surgiram recentemente dois casos polémicos, como o de uma blogger que foi condenada em tribunal a pagar uma multa e intimada a alterar um post que explicitava no título o nome de um restaurante e acrescentava a frase: “Um local a evitar”. Outra acção inédita partiu de um cozinheiro gaulês que lançou uma petição para impedir “opiniões insultuosas contra donos de restaurantes” por parte dos clientes que utilizam sites especializados em classificar hotéis e restaurantes.

Antes de toda esta avalancha de informação está a crítica gastronómica, que desde a sua origem, há mais de dois séculos, ficou marcada pelo facto de emitir um julgamento no subjectivo e sensível domínio do gosto. Em Portugal, a crítica está a comemorar 60 anos de existência graças à coluna que Alfredo de Morais começou em Novembro de 1954 no jornal O Cronista. A crónica inicial, intitulada Um jantar de poetas, referia o “restaurante da Clementina”, onde se terá destacado um “linguado au gratin”, seguindo-se depois 43 textos assinados pelo jornalista até Maio de 1958. 

Aberto o caminho na imprensa portuguesa, há um nome que se impôs em quase dois terços destas seis décadas. Ao iniciar-se em 1975 na revista Tilt, passando no ano seguinte para o jornal Expresso, o jornalista José Quitério criou um estilo próprio de escrita e formatou a forma de fazer crítica baseada em ética e deontologia profissionais. Curiosamente, os seus quase 40 anos de actividade, num mundo maioritariamente masculino, talvez só sejam superados a nível internacional pela jornalista inglesa Fay Maschler, do jornal Evening Standard, que se iniciou na crítica gastronómica em 1972.

 A fiabilidade das críticas publicadas em revistas, jornais, blogues ou redes sociais é mais um factor com que os amantes da gastronomia têm de lidar, situação que Teresa Vivas, da empresa Chefs Agency, que além de comunicar restaurantes também agencia chefes de cozinha, encara com algum cepticismo, pois acha que a qualidade da crítica em Portugal decaiu muito. 

No entanto, e sem querer generalizar, pois conhece chefs que retiram o melhor das críticas que lhes fazem reparos, Teresa Vivas reconhece: “Há outros chefs que nunca entendem que a crítica seja pertinente.” Por outro lado, Joana Pratas admite que os restaurantes preferem saber antecipadamente da presença de jornalistas ou críticos, para poderem controlar melhor a refeição e surpreenderem. “Já houve um caso ou outro em que me disseram: ‘Quero que venha cá o Quitério’ – por saberem que há ali uma crítica num grande meio [de comunicação] ” – mas acrescenta que não foi possível satisfazer esses pedidos pela dificuldade em abordar o jornalista em causa. No entanto, não vê isso como um problema, pois os leitores nem sempre distinguem o que é crítica do que é divulgação.

O manancial de informação que existe funciona como uma espécie de banquete comunitário em que cada um contribui com a sua parte. Cabe ao apreciador de informação gastronómica seleccionar e digerir as suas escolhas de uma mesa farta e tentar perceber em cada “prato informativo” onde estão “ingredientes” como rigor, conhecimento, deontologia, critério editorial, opiniões avulsas e sem filtro – e por vezes até ajustes de contas virtuais. No fundo, é perceber a fronteira entre “formar” opinião ou deixar-se “enformar” pelo efeito viral da multidão que opina acerca de um mundo cujos interesses pessoais têm mais de racional do que de paixão.

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