Dois cozinheiros. Um espanhol, Quique Dacosta, três estrelas Michelin, vindo de Dénia, Valência, do restaurante que tem o seu nome. O outro, o anfitrião português, José Avillez, duas estrelas Michelin, restaurante Belcanto, Lisboa. O festival Peixe em Lisboa, que começou dia 9 e termina amanhã, juntou-os na terça-feira para um jantar “a quatro mãos”, um cruzamento de dois estilos, duas linguagens, duas histórias de vida, duas personalidades.
O jantar começou com uma rosa, um dos pratos de Quique Dacosta, em que só as pétalas interiores da rosa, feitas de maçã, são comestíveis, e continuou com alguns dos pratos mais emblemáticos de ambos. O chef de Dénia trouxe vários trabalhos seus, entre os quais “folhas secas e raízes” (todas comestíveis), um prato de pedras negras em que algumas eram realmente pedras e as outras, exactamente iguais, tinham no interior creme de parmesão, um satay de caranguejo, uma ostra frita, uma gamba da região de Dénia, servida embrulhada em papel de celofane vermelho, um arroz de enguia e beterraba ou um “ovo em cinzas”.
Avillez apresentou, entre outros, a sua versão de frango assado com creme de abacate e requeijão, piripiri e limão, o Ferrero Rocher (idêntico ao chocolate mas com recheio de foie-gras), o “Cornetto” temaki de tártaro de atum com soja picante, papas de milho, enguia fumada, tutano e folhas de capuchinhas, o “seu” cozido à portuguesa ou as pataniscas de bacalhau com guisado de sames.
A Fugas conversou com ambos, a menos de duas horas do início do jantar. Na pequena cozinha do Belcanto, onde mal cabiam, as equipas dos dois chefs estavam já a trabalhar nos 22 pratos — quase todos com técnicas bastante complexas — que seriam servidos dali a pouco, enquanto Quique Dacosta e José Avillez davam entrevistas e a equipa de sala passava as toalhas a ferro e punha as mesas.
Quique Dacosta, começou muito novo na cozinha [no El Poblet, onde continua e que desde 2009 se chama Quique Dacosta Restaurante].
Tinha 14 anos.
O que pensava nessa altura sobre cozinha?
Que era uma forma de ganhar a vida. Não pensava nada, não tinha nenhum antecedente, não queria ser cozinheiro. Apenas precisava de dinheiro para ajudar a minha família. Não havia nenhum componente romântico. Era puro pragmatismo. A minha família precisava de dinheiro e eu tinha duas mãos e dois pés e podia ajudar.
Como mudou depois a relação com a cozinha?
Há um momento, quando tenho 16 anos e termino a escola, no qual tenho que decidir se continuo a estudar ou se continuo na cozinha, porque eu estudava e trabalhava para pagar os estudos. E decido que quero ser cozinheiro profissional. Queria ser arquitecto mas sabia que não tinha dinheiro para isso, queria ser toureiro mas faltava-me o valor, quis ser jogador de futebol mas faltou-me o talento, e então disse ‘Vou ser cozinheiro que é o que tenho mais à mão’.
Nesse momento o que se passava no mundo da cozinha em Valência e em Espanha?
Cozinha popular. Estamos a falar de há 26 anos. No País Basco havia um par de cozinheiros icónicos da cozinha espanhola hoje e ainda estava muito no início o movimento que começa aí, segue pela Catalunha e ramifica-se por toda a Espanha, toda a Península Ibérica, chegando evidentemente a Portugal.
Nessa altura o movimento era apenas uma ideia, não havia nada de material ainda, era uma vontade. A referência era França, onde estavam os grandes restaurantes. O mundo podia ler os livros franceses. Os cozinheiros espanhóis não publicavam livros. A ideia de uma efervescência em torno da cozinha, como acontece hoje no mundo, pode-se medir pela publicação de livros, e os grandes chefs espanhóis naquele momento não publicavam. Possivelmente porque não eram autores de nenhuma das suas receitas. Eram intérpretes da cozinha popular. Uma pessoa tem alguma coisa para contar quando a história é sua.
Como é que esse início do movimento o influencia?
Eu todos os dias cozinhava coisas que se pareciam muito pouco com o que lia nos livros de cozinha francesa. Via os livros e dizia ‘Quero fazer isto, esta decoração de restaurante, estas mesas, este serviço, estes empregados com bom ar, quero isto’. Cozinhava todos os dias mas o que eu fazia era como se fosse um pintor a pintar uma parede e compará-lo com Picasso — ambas as coisas são pintar mas não são o mesmo. Eu queria ir na linha de Picasso, não da parede.
A primeira mudança que acontece no seu restaurante é com aquilo a que chamou a nova cozinha valenciana?
Foi o que chamámos ao estilo que criámos nos anos 1990. A ideia foi pegar na cozinha popular valenciana e actualizá-la técnica e conceptualmente, mas sempre com os produtos e sabores locais. Não havia nada e criámos este estilo, foi o primeiro passo. O segundo foi a nova memória do gosto, a cozinha inspirada na arte e na paisagem, que aconteceu de 2001 a 2009. Agora estamos nesta nova linha, uma cozinha mais directa, muito dinâmica, de técnica executada sem adorno, muito mais criativa.
Mais criativa do que a fase anterior?
Sim, muito mais rítmica. Quando te inspiras numa fábula para criar um prato há muito mais discurso, uma mensagem mais literária, mais fácil de comunicar, o mesmo acontece com uma paisagem, como o bosque animado. Agora, temos uma ideia e executamos, técnica e conceptualmente, sem mais preâmbulos. Em vez de criar pratos que são tudo, fazemos pequenas coisas que vão construindo algo, como uma pequena pedra que se coloca numa parede. Não há nenhuma pedra transcendental mas todas constroem uma parede que se vai convertendo numa muralha.
São sempre pequenos pratos.
Sim, claro. No meu restaurante o cliente come umas 40 coisas diferentes. Se a ideia é comeres uma pedra, criamos uma pedra e não um prato em torno de uma pedra. Se queremos criar uma folha de um livro é isso que criamos. Só temos que encontrar a melhor técnica para o fazer. No início fazíamos uma cozinha de um prato por ano, era o ano do bosque animado, o ano do salmonete, agora há muitas pequenas coisas. O projecto cresceu e evoluiu muito.
Porque sentiu a necessidade dessa mudança?
O restaurante está em Dénia, que é uma pequena povoação que não chega a ter 50 mil habitantes. As pessoas vêm de todo o lado, de Lisboa, do Porto, da Extremadura, de Paris, para comer. São oito mil clientes por ano e vêm à procura de uma experiência. Quis mudar porque me apercebi que nos tínhamos convertido num restaurante previsível. O cliente podia prever o que iria passar-se: um prato inspirado num quadro ou numa paisagem, vai haver uma gamba, certamente um arroz, um vegetal.
Um cliente que vem da Austrália já pode imaginar o que vai encontrar. Além disso, o que estávamos a fazer, apesar de ser muito nosso e autêntico, já se tinha democratizado, muitos cozinheiros faziam bosques animados, inspiravam-se na arte, tinham uma gamba maravilhosa.
O mais difícil foi termos mudado no momento mais complexo económica e socialmente. Em momentos de crise as pessoas geralmente refugiam-se em valores seguros e estes estão muitas vezes na tradição. Um cliente pensa ‘Vamos a um restaurante criativo ou vamos comer um peixe grelhado? Vamos investir no quadro de um artista novo ou num consagrado?’ Mas como não estamos nisto por dinheiro (temos outros negócios que nos dão dinheiro), no restaurante de Dénia é uma questão ideológica, emocional, é como gosto de entender a cozinha, mudámos. Com respeito mas sem medo.
E a reacção das pessoas foi…
… díspar. O que as pessoas querem é que aconteçam coisas, o que quer que seja, um prato surpreendente, que se apague a luz, que caia um empregado, algo, mas que aconteça. É como uma final do campeonato, se vamos todos a Paris ou a Londres ver o jogo esperamos que aconteçam coisas, se o jogo acaba 0-0… que aborrecido.
Classifica esta sua nova fase como mais introspectiva. Porquê?
Porque procuro a inspiração dentro de mim. Procuro a mensagem na minha paisagem mais interior. A maneira de o contar, a linguagem, é muito mais a soma do que sou. É o mais difícil, procurar nos teus estados de ânimo, na tua forma de entender a cozinha, sendo prisioneiro de ti mesmo e mais livre do exterior.
E vem desta ideia de que as pessoas procuram-te a ti, com as tuas singularidades, para além do teu território ou outra coisa, procuram a tua história, a tua mensagem, a tua maneira de fazer cozinha. Eu acredito que o cliente vem a Dénia procurando autenticidade, e essa autenticidade está dentro de mim.
Procuram mais uma personalidade do que um território do qual nasce uma cozinha?
Sim. Porque se em frente ao meu restaurante abrem outro restaurante criativo, compram a tecnologia, o produto, têm o território, e o meu chefe de criatividade vai trabalhar para lá, se o território é o mesmo, a tecnologia compram-na, a técnica aprende-se, qual é a diferença?
Os menus com muitos pratos pequenos são muitas vezes criticados por terem um excesso de informação.
Isso depende das pessoas. Há as que vêm, comem e tudo lhes parece pouco, e outras para os quais tudo lhes parece muito. Mas é um pouco como eu dizer ‘Olhe, Scorsese [o realizador de cinema Martin Scorsese], o seu filme dura duas horas, não me apetece ver tudo, mostre-me só o trailer, o filme tem demasiada informação, muitas imagens.’
José Avillez, disse que considera Quique Dacosta “genial”. Porquê?
É a palavra certa para descrever alguém que está bastante acima da média, que faz algo que nós admiramos e que de alguma maneira eu, no meu papel, almejo fazer. Apesar de termos passados, presentes e, com certeza, futuros diferentes, estamos agora a cruzar essas vivências, e de alguma maneira isto vai marcar a vida dele e a minha.
E como é que o discurso de Quique Dacosta sobre a necessidade que sentiu de mudar é visto por si, como chef?
Estava a pensar que o que vivo hoje em Portugal é um pouco, se calhar, o que o Quique viveu em Espanha mas há 15 anos. O Quique hoje pega no mundo para criar. Eu tento, nesta fase pelo menos, limitar-me ao meu universo local porque acho que isso ainda está por fazer em Portugal — e em Espanha provavelmente já não está.
Ele pode olhar para o mundo inteiro, para as viagens que faz, as influências que tem e criar com base numa paleta de sabores gigantesca, da China ao Japão, à Tailândia, ao México, ao Peru. Não é que eu não use essas influências mas um menu do Belcanto actualmente tem 80, 85% de influências locais, o que por um lado facilita, porque são sabores que conhecemos, mas por outro dificulta porque nos dá menos armas, uma paleta mais reduzida.
Esta diferença tem muito a ver com o que o Quique viveu há 15, 20 anos em Espanha, em que fase é que o país estava e ele estava, e em que fase é que eu estou agora. Tal como ele fala do momento em que surgiu a nova cozinha valenciana, nós começamos agora a falar da nova cozinha portuguesa, nem chegámos à nova cozinha de Lisboa. Há esse trabalho todo de base que de alguma maneira eu me sinto também responsável por fazer.
Estamos ambos em 2015, mas o 2015 da cozinha contemporânea em Espanha é muito diferente do 2015 da cozinha contemporânea em Portugal. A nova cozinha portuguesa tem uma base de inspiração muito espanhola, apesar de haver em técnicas clássicas francesas. Dantes criava-se uma receita, depois começamos a pensar numa paisagem para fazer um prato — uma coisa que eu fiz também muito influenciado até pelo trabalho do Quique, mas usando as minhas próprias paisagens.
Quique, como vê o actual momento da cozinha portuguesa?
Não sou um conhecedor para fazer um juízo, mas tenho a sensação de que há movida, e isso é muito bom, há vontade de fazer, e há uma base cultural importante, há produto, e líderes. Mas, como com qualquer disciplina criativa ou artística, para haver um crescimento é preciso um suporte económico.
Sei que se diz que quanto mais fome se passa mais criativo se é, que com a necessidade cria-se mais. Sim, mas se não há quem te compre o quadro, este pode ser muito criativo mas vai ficar aí guardado. O movimento da cozinha espanhola surgiu num momento de economia pujante, em que os clientes vinham, queriam experimentar, queriam saber. Se não há clientes nada funciona. Mas se há crescimento, que acho que é o que vai acontecer em Espanha e em Portugal, surgirão mais restaurantes de cozinha criativa.