Fugas - restaurantes e bares

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Leonardo trouxe o espírito nórdico para uma horta à beira da praia

Por Alexandra Prado Coelho

O que faz um cozinheiro quando decide sair do Noma, o “melhor restaurante do mundo”? Leonardo Pereira veio para Portugal, encontrou um pequeno paraíso junto à praia, uma cozinha enorme, uma horta — e carta branca para criar. O resultado é surpreendente. Ainda é (muito) nórdico mas já é também português.

Ainda não estamos há muito tempo na enorme cozinha das Areias do Seixo e já Leonardo Pereira, desde Dezembro o chef deste resort junto à praia de Santa Cruz, encheu a bancada com caixas transparentes no interior das quais bailam líquidos de várias cores. Ao lado, uma série de colheres. É hora de provar as experiências de Leonardo.

Primeiro os líquidos brancos. “Isto é leitelho, aqui é keffir e o outro é viili, uma cultura de iogurte da Finlândia, que tem um gosto mais floral”, explica, enquanto mergulha a colher para provar e ver como cada um está a evoluir. A seguir volta-se para as outras caixas e começa a despejar os líquidos em diferentes copos, olhando-nos com um ar curioso para perceber como reagimos a cada sabor.

“Esta é uma infusão de sabugueiro. Se se deixar à temperatura ambiente começa uma fermentação espontânea que dá este champanhe de sabugueiro”, diz, enquanto provamos a bebida doce e com uns suaves picos resultantes dessa fermentação natural. “São as nossas experiências com kombucha, que é um aglomerado de microorganismos que formam um género de um fungo e dão estas bebidas deliciosas.” Os copos vão-se enchendo de líquidos mais claros ou mais escuros, de sabores mais doces ou mais ácidos, feitos a partir de rosas, dente-de-leão, erva-príncipe (o melhor de todos) e jasmim.

Mas eis que chega mais uma caixa com um líquido acastanhado onde boia algo que não identificamos. “O último”, continua Leonardo, entusiasmado, “e o mais estranho, é este, feito de massa de pão, pedaços de pão velho e sultanas, que lhe dão doçura”. “É o kvass, tradicional na Polónia, na Rússia, na Ucrânia, onde geralmente o deixam fermentar até ganhar algum teor alcoólico, dois, três graus.”

É fácil perceber aqui a influência do espírito do Noma, que ocupa o primeiro lugar na lista dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo e onde Leonardo trabalhou durante quatro anos, antes de decidir regressar a Portugal e lançar-se num projecto próprio. É o mesmo espírito de curiosidade, de vontade de explorar sabores — neste caso as fermentações, que são também uma das áreas de pesquisa no Noma — e a mesma (embora numa escala muito mais pequena) mistura de culturas numa equipa internacional, onde se comunica sempre em inglês.

Quando a Fugas chega ao Areias do Seixo, pelas duas e meia da tarde, a equipa de Leonardo está espalhada pela cozinha e ocupada com diferentes tarefas. É a hora do mise en place, na cozinha de baixo, para que tudo esteja pronto quando, à hora do jantar, a corrida do serviço começar na cozinha de cima, aberta para a sala de refeições.

Leonardo faz questão de os apresentar um a um. Junto a um lava-louças fora da zona da cozinha está Simone, a estagiária de 17 anos, vinda de ali perto, da escola profissional da Póvoa de Penafirme, e que está a lavar meticulosamente os legumes trazidos da horta das Areias do Seixo horas antes. Conta que quis vir para aqui estagiar “por causa do trabalho ligado à natureza, e também por causa do chef, que é novo e muito conceituado”. E diz que tem aprendido imenso. “Nunca tinha trabalhado com funcho, nem com o bolbo do aipo, nem nunca tinha visto os óleos de ervas que se fazem aqui.”

Lá dentro, na cozinha, está André Jesus, 19 anos, outro português também vindo da escola de Penafirme, mas que já aqui trabalhava antes da chegada de Leonardo. “No início, com o primeiro chef que aqui trabalhou, servíamos legumes salteados e carne e peixe grelhados, com o segundo já fazíamos coisas um bocadinho mais elaboradas. Mas só agora com o chef Leonardo é que estou realmente a aprender e a fazer coisas que nunca pensei que fosse possível. Hoje faço raviolli de legumes, neste caso com aipo, por exemplo, fermentações, inúmeras coisas. Na escola aprendemos o básico e, agora sim, aprendemos coisas que valem a pena e que nos fazem crescer.”

Foi provavelmente por este entusiasmo em trabalhar num sítio paradisíaco e com um chef que está disposto a arriscar e a fazer coisas completamente diferentes que o coreano Su Hong Kim, mais conhecido como Luke, “implorou” (a expressão é do próprio) a Leonardo, que conhecera durante uma passagem pelo Noma, para ficar a trabalhar aqui. “Por favor, por favor, quero ficar”, conta, com o mesmo tom cómico com que passa o tempo a fazer rir os outros. Mas é a sério que acrescenta: “Na Coreia não encontramos este tipo de cozinha.”

Também o sueco Lukas estagiou com Leonardo no Noma há cinco anos e, apesar de não saber quase nada sobre Portugal, quando o chef o contactou, em Abril do ano passado, para lhe perguntar se estaria disposto a juntar-se a ele numa aventura portuguesa, disse logo que sim. “Para mim era uma oportunidade de trabalhar com ele e fazer parte de um projecto novo.”

Chegou em meados de Novembro e “estreou-se” logo no jantar pop-up do projecto Origens, que Leonardo fez nessa altura no bar Vestígius, em Lisboa. Foi uma prova de fogo, em que não tinham uma cozinha profissional e ainda não tinham trabalhado como equipa. O jantar foi um sucesso e um mês depois, em pleno Natal, estavam a abrir no Areias do Seixo.

Kiki, a senhora do pão

Falta-nos apenas conhecer um elemento fundamental desta equipa: Kiki, tailandesa e mulher de Leonardo, que ele também conheceu no Noma. Está na zona da padaria, porque depois de uma experiência falhada com outro padeiro é ela quem se ocupa desta secção. E, enquanto estica a massa, conta-nos que juntos pensaram “qual seria o próximo passo na vida, o próximo desafio”, ponderaram várias hipóteses e acabaram por se encantar com o Areias do Seixo.

Agora vivem ali perto, “junto à praia”, e estão de corpo e alma neste projecto. Ela anda entusiasmada a trabalhar as massas com fermento natural e já aprendeu a fazer pão de milho. Mas nem tudo é novidade para esta tailandesa que cresceu no Canadá — quando vivia neste país e “nem sonhava que um dia casaria com um português”, Kiki morava “num bairro português, por cima de uma padaria portuguesa e comia um pastel de nata por dia.”

É altura de sairmos da cozinha e irmos conhecer a horta com Leonardo. Na estufa várias coisa secaram com o calor dos últimos dias, mas no exterior está tudo a crescer bem. “Nós, os cozinheiros, estamos habituados a ingredientes estandardizados, em quantidades maciças. Nunca estamos realmente a ver o que gastamos. Para nós cada dia é um dia e representa duas caixas de maçãs, uma de laranjas.” Avança pela horta, vai apanhando uma erva aqui, outra ali, mordisca, dá-nos a provar.

“Isto é um reality check. Aqui vemos que esta planta demora cinco, seis, sete semanas até estar boa para apanhar e isso obriga-me a pensar que, apesar de gostar muito dela, não a posso pôr no menu neste momento porque não vou retirar dela o máximo de qualidade”, explica. “Não olho para este tomilho como 100 gramas, mas como uma erva que demorou a crescer, e da qual se calhar numa altura posso aproveitar as folhas, noutra as flores. Isso permite-me pensar nele não apenas como erva aromática mas como uma possível guarnição, uma flor de tomilho avinagrada, por exemplo.”

Ou seja, ter uma horta à mão muda a forma como um cozinheiro pensa e se organiza. “Numa cozinha o tempo são segundos, numa horta são anos. É como viver em dois mundos.” No Areias do Seixo há um menu à la carte que é planeado para a semana, e depois o menu de degustação, que depende muito mais do que está disponível para ser trabalhado. E aí a horta é que manda. Este é um projecto anterior a Leonardo. Há um ano e meio que os proprietários do Areias do Seixo começaram a trabalhar uma horta em permacultura e o resultado já se nota. “O solo aqui era arenoso como aquele ali”, diz Leonardo, apontando para as dunas lá ao fundo. A permacultura permitiu que hoje ele tenha outra cor e outra consistência.

Mas ainda há muito trabalho a fazer — estão agora a impermeabilizar de forma natural algumas zonas escavadas para fazer pequenos lagos naturais em redor dos quais deverão surgir diferentes microclimas. “No Noma trabalhávamos muito com plantas selvagens. Aqui quis-me expor a este desafio que é teres uma horta e pegares nela o mais possível.” Isto não significa, no entanto, que tudo o que se come no restaurante venha da horta. Ainda há muitos produtos para os quais precisa de fornecedores e identificar os melhores é um trabalho em curso — está, para já, muito satisfeito com a colaboração com a Biofrade, da Lourinhã, que lhe fornece os tubérculos e outros hortícolas.

Continuamos a percorrer a horta. No meio dos coentros e das acelgas nasceram, selvagens, uma abóbora e um girassol. “Esta erva é a armola, é ligeiramente salgada.” Provamos. “Na Dinamarca só tínhamos um tipo de coentro sempre com a mesma forma e feitio. Nunca conseguíamos arranjar sementes ou flores.” Leonardo avança e mostra outra planta. “É uma variedade de alface que veio da América do Norte.”

Confessa que “antes de começar aqui não tinha ideia” do que iam fazer. Abre um sorriso. “Sabia que íamos partir de um ponto confortável mas que fosse um desafio, embora nada de extravagante.” Mas o caminho começou a desenhar-se e hoje, cinco meses depois de abrirem, sente que estão a encontrar a linha que os define. A influência do Noma continua presente, isso é inegável. “Não fazemos cópias do Noma, mas associamos sabores, e sobretudo texturas, da mesma forma.”

O menu de degustação “tem uma forte componente vegetal” e isso também é uma marca da nova cozinha nórdica. Tal como o trabalho com as fermentações, “os misos, os kombuchas, os lacticínios fermentados, os óleos aromatizados, os vinagres”. “A ideia é criar um conjunto de pastas e temperos que sejam nossos e que nos sirvam de base quando introduzimos algum produto novo.” Ou seja, procuram uma linha de sabores que criem uma identidade.

Ao mesmo tempo, Leonardo vai namorando com alguns sabores portugueses sem grande preocupação de encontrar etiquetas para tudo o que faz. “Formei-me como profissional de cozinha lá fora e acho natural que o meu trabalho reflicta a minha formação. Essa guerra entre o gosto português e o gosto de fora ainda não aconteceu na minha cabeça. Se calhar vai acontecer um bocadinho mais para a frente. Ainda não cheguei àquele ponto em que pergunto a mim próprio por que é que não pego num frango de churrasco e o tento colocar num prato. Talvez venha a acontecer. Mas levo as minhas batalhas um dia de cada vez.”

Diz-se “fascinado” pela cozinha do Norte de África e anda a pensar nas ligações com a cozinha portuguesa de há uns séculos, quando “tínhamos uma maior diversidade não só de iguarias mas de formas de confeccionar os alimentos”. Começou a interessar-se, por exemplo, pelas gemas de ovos, produto que a doçaria portuguesa tão bem trabalha. “Ainda ontem experimentámos cozinhar uma gema num garum [molho feito com as vísceras dos peixes fermentadas, que era muito apreciado pelos romanos]. A primeira coisa que fizemos aqui foi experiências com garum de chicharro, de carapau, de cavala. Agora tentámos cozinhar a gema nesse líquido, que já tem cinco meses. Quem sabe se começa aqui esta pequena travessia…”.

A prova

Para perceber os caminhos da cozinha de Leonardo Pereira temos que nos sentar à mesa. Vamos, então. Ficamos ao balcão, com vista privilegiada para o espectáculo na cozinha. Equipa a postos, grande concentração, uma dança exótica de corpos que se evitam no último segundo, de pratos que se equilibram, de caixas que passam constantemente de uma bancada para a outra. Cada um com a sua função, mas sempre atentos a uma ordem do chef para ajudarem outro que precise.

Os pedidos chegam e o ritmo acelera. Ouvem-se “sim, chef!” daqui e dali. Luke, o coreano brincalhão, já não tem tempo para brincar — está atento à carne. Lukas, o sueco, prepara os nabos de uma das entradas. Kiki aparece com os pães que fez e que são acompanhados por uma pasta de favas decorada com flores de borragem. Simone, a estagiária, está ali para dar uma ajuda onde for necessário. E André parece um raio, tão depressa de um lado da bancada como do outro, concentração ao máximo.

Todos parecem ter um ouvido especialmente sintonizado para captar cada uma das ordens que Leonardo, ao comando nos fogões e agitando vários pequenos tachos ao mesmo tempo, vai dando. Controlam-se os minutos de cada coisa para a máxima coordenação e garantia de que no momento do empratamento nada fique à espera a arrefecer.

Chegam as primeiras entradas: uns óptimos nabos frescos (os mesmos que Simone tinha estado a lavar à tarde e Lukas a preparar há momentos) com uma emulsão de manteiga noisette e trigo sarraceno; ovos de codorniz com botelho-comprido (uma alga de Aveiro) e sal fumado; curgetes com flor de laranjeira e crème fraiche.

De seguida, um prato com folhas de diferentes variedades de alface, lagostins do rio e pétalas de rosa; um delicioso coalho de leite com caldo de presunto e rebentos de vinha; cebolas novas assadas com sementes de coentro e manteiga de ovelha; choco com vinagrete de perpétuas; espargos brancos assados com água de tempeh (fermentação feita com grão de bico); tendões de vaca com alcachofras e um molho feito com levedura tostada; e o prato de carne, porco com molho de sangue e mizuna (folhas de mostarda japonesa).

As linhas de sabor de que tínhamos falado à tarde com Leonardo estavam claramente presentes: as manteigas a cortar a acidez das fermentações e de alguns legumes, a presença dos produtos lácteos, mas também o molho de sangue a lembrar-nos que o chef dissera gostar muito de cabidela.

E, por fim, as sobremesas: kombucha de alfazema com morango e sabugueiro; gelado de cera de abelha com nêsperas e pólen de flores; e uma surpreendente mistura de aipo, leitelho de vaca e um óleo feito com molho de chá tailandês; para terminarmos tudo com um clássico nórdico, o koldskal, feito com leitelho, ovos e açúcar, uma versão mais leve de leite-creme, no qual fomos convidados a mergulhar cerejas portuguesas.

Por essa altura, a azáfama acalmou na cozinha, os rostos voltaram a estar descontraídos, as caixas começaram a ser arrumadas. É o momento de que Leonardo nos falara à tarde. “Há uma satisfação que chega com o fim do serviço, quando se abrem as gavetas frigoríficas e se vê que não sobrou nada, tiveste casa cheia, fizeste tudo a que te tinhas proposto e amanhã podes começar tudo outra vez.”

Entre a Escandinávia e Portugal, com uma horta à beira da praia e um mundo de produtos a descobrir, Leonardo Pereira vai construindo, com o entusiasmo de quem tem tudo em aberto, a sua linguagem gastronómica – arriscada, surpreendente, experimental e, acima de tudo, livre.

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