Quando Alfred Prasad se mudou para o Reino Unido, há 16 anos, teve um choque. Ou melhor, dois. “Não reagi muito bem, confesso”, conta o chef indiano à Fugas. “Percebi que aquilo a que estávamos a chamar comida indiana não tinha nada a ver com a comida indiana. Era mais o que os chefs indianos achavam que os britânicos iam aguentar. Eles quase criaram uma nova cozinha, amaciando todas as receitas, com leite de coco, natas ou outra coisa, tornando-as quase sem sabor.”
Esse foi um choque. Ou outro foi a passagem de grandes cozinhas de hotel, com enormes brigadas, para “uma cozinha mínima, do tamanho de uma caixa de fósforos, onde todos chocavam uns contra os outros”. Durante dois anos Alfred trabalhou num restaurante assim, mas depois conseguiu mudar para o Tamarind e a sua vida mudou também. Foi aí que, ao fim de um ano de trabalho, conseguiu a primeira estrela Michelin conquistada por um chef indiano em Londres.
Manteve a estrela durante 13 anos até que em Dezembro do ano passado decidiu fazer outra mudança na sua vida: deixar o Tamarind e abrir o seu próprio restaurante londrino. Enquanto decorre o processo de escolha do espaço e as obras está numa espécie de “ano sabático”, viajando e procurando aprender mais. Foi assim que veio até Sagres, no Algarve, para cozinhar durante duas noites no resort Martinhal, no Parque Natural do Sudoeste Alentejano.
No jantar que preparou quis homenagear as ligações gastronómicas que existem entre Portugal e a Índia. “Segundo reza a história, foram os portugueses que levaram o picante para a Índia, assim como o tomate, porque foram à América do Sul, descobriram estes ingredientes incríveis e transportaram-nos com eles para a Índia”, explica.
Mas há outra história que se cruza com esta: é que, reza também a lenda, apesar de terem levado o picante, os portugueses achavam alguns pratos indianos demasiado fortes. Assim, o primeiro registo que existe da utilização do leite de coco numa receita está relacionado com os portugueses, afirma Alfred. No estado indiano de Kerala foi criado um molho, conhecido como moilee, e que hoje é muito popular com marisco e peixe. Alfred apresentou mexilhões com moilee, que, para além do leite de coco, leva gengibre e curcuma.
A outra homenagem aos portugueses surgiu no prato de carne, um borrego assado acompanhado por molho vindaloo, uma especialidade goesa que nasceu da vinha d’alhos portuguesa. A carne trazia vários acompanhamentos que mostravam a enorme variedade que oferece a cozinha indiana: um arroz basmati, beringela e batatas, lentilhas tadka moong e uma raita de pepino e romã.
“Este é um dos pratos mais famosos de Goa, mas também muito famoso no Reino Unido”, conta o chef. “Os britânicos até têm um cântico de futebol que é assim [canta]: ‘Vindaloo, vindaloo, vindaloo, vindaloo, ha, ha.’ Eles adoram vindaloo em Inglaterra. Em Goa é feito com porco, e o molho tem como base vinho e alho e é mais uma contribuição dos portugueses que deixou uma marca profunda na gastronomia indiana.” Na Índia, o vinha d’alhos transformou-se, naturalmente, e tornou-se mais intenso e picante.
O jantar incluiu ainda um robalo delicadamente cozinhado com uma crosta de ervas, acompanhado por um camarão “tempkora” – uma brincadeira em que Alfred mistura as técnicas da pakora (fritos indianos com farinha de grão) com a tempura japonesa. O chef não sabia, contudo, que havia aqui também uma ligação aos portugueses, que cozinham desta forma por exemplo os “peixinhos da horta” e que terão levado a técnica para o Japão, onde foi depois largamente adoptada.
Curiosamente, a sobremesa acabou por ser igualmente algo familiar para os portugueses, embora também aí não tenha sido intencional: um kheer, uma espécie de arroz doce com especiarias. “Na India, o kheer é arroz cozido em leite durante três ou quatro horas, com canela, cardamomo, açúcar e costuma ser servido com frutos secos, pétalas de rosa, é muito aromático, uma comida de conforto”, explica Alfred. “Disseram-me que a versão portuguesa tem gema de ovo e usam casca de limão, o que é muito semelhante ao que experimentei em Itália”.
Depois do choque inicial que sofreu, o trabalho de Alfred nos últimos anos em Londres tem sido exactamente para desfazer os mitos que existem em relação à cozinha indiana. “A Índia tem cerca de 30 províncias e estou sempre a dizer aos ingleses que pelo menos cinco delas são maiores do que o Reino Unido.” Um país desta dimensão tem necessariamente tipos de comida muito diferente. Mas, lamenta, “a única comida que o resto do mundo parece reconhecer como comida indiana é de uma única região, o Punjab”.
Isso tem uma explicação. “Os punjabi são muito empreendedores e muito orgulhosos da sua comida, em geral um punjabi só come comida do Punjab. Quando se instalaram no Canadá, no Reino Unido e noutras partes da Europa, trouxeram com eles a sua comida, criaram os seus restaurantes. Hoje, se pedir a um europeu para dizer quais são os seus cinco pratos favoritos da comida indiana, provavelmente ele vai dizer cinco pratos dessa região. Mas isso é apenas a ponta do iceberg, debaixo da água há muito mais.”
Por outro lado, no Ocidente esta comida adaptou-se ao gosto local, tornando-se uma versão diferente daquilo que é na Índia. Em Inglaterra, quando alguém diz “vamos comer um caril” quer dizer “vamos comer comida indiana” porque (erradamente) caril tornou-se sinónimo da gastronomia da Índia.
Ao longo dos 13 anos que passou no Tamarind, Alfred fez muito para mudar essa percepção. E no seu novo restaurante vai fazer ainda mais. “Gostava que as pessoas entendessem que a comida indiana é o que é hoje por causa da influência de muitas outras cozinhas. A Índia nunca invadiu outro país, ao longo dos tempos tem sido a terra do leite e do mel para outros povos, por isso a nossa comida é a contribuição dos holandeses, portugueses, dos chineses, dos mongóis vindos da Pérsia, é uma mistura de várias culturas e por isso tem tanta diversidade.”
Além disso, continua, é uma cozinha mais leve do que se pensa habitualmente. Um dos mitos que quer derrubar com o seu novo restaurante é o de que esta não é uma cozinha indicada para almoços. “Quero sabores clássicos, quero tornar a comida mais leve, mais da estação, com muitos vegetais, muito peixe e marisco, e com melhor apresentação.”
Um dos pontos fracos da gastronomia indiana, na sua opinião, é tudo ser demasiado cozinhado. “Quando se compra uma boa peça de peixe ou carne queremos prepará-la na perfeição e, infelizmente, na comida indiana tudo é cozinhado demais, durante muitas horas, até a carne se separar do osso e os vegetais perderem o valor nutricional. O que pretendo é manter o mesmo perfil de sabor, mas com os ingredientes cozinhados no ponto e bem apresentados.” Outra alteração que planeia introduzir tem a ver com os hidratos de carbono. “Quero quase eliminar a pesada cozinha de hidratos a que estamos habituados na Índia com grandes taças de arroz, muito pão.”
A abertura está prevista para Junho ou Julho de 2016 e Alfred ainda procura o nome certo. “ Tem que ser um nome que reflicta o conceito, a maioria dos restaurantes indianos tem o nome de especiarias, ou, no caso dos mais antigos, nomes como Star of India, Taj Mahal, Tandoori isto ou aquilo. Eu quero um nome curto, fácil de dizer e de lembrar, quero que seja um sítio de todos os dias, com pequenos pratos para partilhar, porque a forma de comer na India é partilhando pratos.” Será, promete, uma cozinha “colorida, divertida, leve”.
Jantares de Inverno
O Martinhal – o resort de cinco estrelas que nasceu há cinco anos na Praia do Martinhal, em Sagres – posicionou-se como “O melhor resort de luxo para famílias na Europa”. E, de facto, no início de Outubro está praticamente cheio de jovens casais com crianças de colo (porque para os mais velhos o ano escolar já começou).
Para além dos 37 quartos do hotel, existem 55 Ocean Houses, 28 Bay Houses, 39 Garden Houses e 10 Pinewoods (com piscina privada). Há ainda as Luxury Villas (45) e as Vilas Mimosa (23). Os serviços de apoio oferecem, entre outras coisas, cinco clubes para as crianças de diferentes idades.
O resort tem ainda três restaurantes: o Dunas (junto à praia), que serve sobretudo marisco e peixe, Os Gambozinos (italiano) e O Terraço, que fica no edifício principal, e onde se realizou o jantar do chef indiano Alfred Prasad. É aí que, durante os meses de Inverno, acontecem geralmente estes jantares, abertos a toda a gente e não apenas aos clientes do resort.
Nos últimos anos passaram pelo Martinhal sobretudo chefs portugueses, mas haverá também convidados estrangeiros – basta estar atento à agenda para conhecer os próximos convidados. O preço de cada jantar de Alfred Prasad foi de 80 euros por pessoa, incluindo uma selecção de vinhos portugueses.