Aula 1: Fundos e caldos
Primeiro dia de aulas do curso de iniciados do atelier de cozinha Feed Me. Somos umas 12 pessoas à volta da mesa de trabalho, com placas eléctricas e alguns utensílios de cozinha. Ao fundo, o professor, fotógrafo e gastrónomo Hugo Campos (autor das receitas que a Fugas publica duas vezes por mês e que em 2012 fundou esta escola), tem à frente uma panela onde parece estar já a passar-se qualquer coisa. Tema da primeira aula: os fundos ou caldos. Em cada lugar há um avental branco e um livrinho com uma citação de Ludwing Fenerbach: “O homem é aquilo que come”. Vamos então perceber por que comemos assim.
“Não esperem sair daqui com receitas”, avisa Hugo Campos. Este é um curso para nos pôr a pensar. O objectivo é que, quando estivermos nas nossas cozinhas, consigamos criar alguma coisa com os ingredientes que tivermos à disposição, jogando com temperaturas, equilíbrios de sabores e a reacção de cada ingrediente. “O princípio aqui é a capacidade de interpretar o que nos é dado e saber o que queremos do prato”, explica. E, para isso, é bom conhecermos uma das técnicas base da melhor escola francesa: os tais fundos.
O nosso livrinho descreve-os como “preparações culinárias líquidas aromáticas claras, mais ou menos concentradas e ligeiramente perfumadas”. Obtêm-se cozendo em água ossos e pedaços de carne – vaca para um fundo de vaca, aves para um fundo de aves, espinhas e aparas de peixe para um fundo de peixe – e uma guarnição aromática de legumes e ervas de cheiro.
Hugo Campos pede para que cada um se apresente e explique o que espera destas aulas (cinco, no total). Há quem tenha algumas noções básicas de cozinha e queira desenvolvê-las melhor, quem não tenha nenhumas – há um rapaz que veio estudar para Lisboa e, como vai viver sozinho, quer garantir que come bem, uma mãe e uma filha que decidiram fazer o curso juntas, dois amigos que se desafiaram mutuamente e aqui estão, há gente de todas as idades e são tantos os homens como as mulheres.
A primeira aula é a mais teórica, avisa o professor. Por isso não chegamos a sujar os aventais. Mas ficamos a saber, entre muitas outras coisas, que quando se quer extrair sabor dos alimentos usa-se água fria ou a baixa temperatura e que para os caldos de carne (ossos, cartilagens, partes gelatinosas, carcaças, são o ideal) é preciso bastante tempo, enquanto os de peixe são bastante mais rápidos (máximo de 25 minutos, para que não se percam os aromas voláteis).
Temos ainda oportunidade para falar na forma como se usa o sal – não esquecer que desidrata os alimentos, por isso, explica Hugo, “se temperarmos um bife com antecedência, usam-se 10 gramas de sal e ele fica homogéneo; se o temperarmos no final, ele fica menos homogéneo mas 3 gramas de sal são suficientes.” Fazemos também uma rápida passagem pelas diferentes variedades de arroz.
Olhamos com respeito para as facas que Hugo tem em cima da mesa, mas ainda não é hoje que as vamos experimentar – nesta aula haverá apenas explicações sobre as diferenças entre elas. Observamos atentamente como o professor corta o peixe – um tamboril em lâminas muito finas que vão cozer no caldo de peixe que acabámos de fazer e que provamos no final da aula, com amêijoas. Muito bom. E aquilo das facas… bem, parece fácil. Deslizam bem. Na próxima aula vamos mostrar que percebemos a técnica perfeitamente.
Aula 2: Os molhos
Antes de nos dedicarmos ao peixe, temos uma aula sobre entradas, molhos e emulsões. A boa notícia é que vamos já poder usar as facas, neste caso para desmembrar uma codorniz, para uma das receitas, e cortar postas de salmão, para outra. A ideia é juntar várias técnicas: vamos marinar o salmão, aprender a fazer maionese, molho acidulado (este, em que se substitui a gordura do azeite por natas e o vinagre pelo limão, vai ser usado para o salmão), emulsão de manteiga com limão e molho bearnês. Importante (ou pelo menos eu tomei nota disso várias vezes, com sublinhados) é saber que para emulsionar temos que ter texturas iguais e temperaturas iguais.
Em cima da minha tábua de trabalho está agora uma codorniz e, à minha frente, uma faca. É altura de perceber como se separam peitos e pernas. Olho para os meus colegas, concentradíssimos. Hugo ajuda-nos a perceber o local da ligação dos ossos, o sítio por onde a faca deve deslizar e, um pouco desajeitadamente, lá vamos ganhando alguma familiaridade com a anatomia do animal.
O resultado? Bem, há quem tenha reduzido a perna, já de si pequena, a algo quase inexistente (o corte era noutro sítio, claro), mas no geral conseguimos apresentar peitos e pernas respeitáveis. Até porque, lembra o professor, sorrindo, se estragarmos os ingredientes acabamos sem jantar. E não, isso não aconteceu. Houve codornizes fritas com molho de vinho do Porto obtido a partir de um caldo feito com as carcaças, e houve salmão marinado com molho acidulado e um crocante com sementes de sésamo surpreendentemente fácil de fazer – daqueles bons para impressionar os amigos, comentamos.
Aula 3: Peixes
Parece fácil, mas não é. Nada. Hoje temos à frente douradas e robalos. A ideia é filetá-los. Lembram-se da aula sobre facas? Pois é. Golpe, separar a pele, segurar a pele com a ponta do dedo, encostar a faca e fazê-la deslizar, separando a pele e a carne. O problema é que nas nossas tábuas isso não acontece. Apesar dos esforços evidentes, há peixe que começa a esfarelar-se, de tão amassado pelos nossos dedos.
Irene, a incansável assistente de Hugo Campos, vem em nosso auxílio, tentando salvar o que resta dos peixes. Consigo, com algum alívio, retirar um filete, mas Irene chama a atenção para a quantidade de peixe que ficou agarrada à pele. Mesmo assim, há tábuas nas quais o desastre parece pior. Nada de grave, no entanto. Todos acabamos a rir enquanto reunimos as lascas de peixe que iremos cozinhar.
É também dia de fazer puré de batata (não há volta a dar-lhe, o segredo é mesmo a manteiga, mas podemos sempre pôr menos que a do célebre puré de Joël Robuchon: 1kg de manteiga para 2kg de batatas). Passagem rápida sobre a questão dos tipos de batata certos para fritar ou cozer (mais amido, menos amido) e vamos aprender a fazer um molho sabayon, que, na versão criada por Hugo, leva caldo de peixe. Comemos, acompanhado por pedacinhos de abóbora salteados com limão cortado aos quadradinhos. Isto sim, penso, dá para fazer em casa sem correr riscos. Quanto aos caldos, já lá vão três aulas, mas talvez seja aconselhável um pouco mais de prática.
Aula 4: Carne
Alguma coisa está ao lume há já muito tempo quando iniciamos a aula. Hugo tinha avisado que este era o módulo em que, lá mais para o final, íamos pegar nos pratos e subir até ao andar de cima para, à volta de uma mesa, e com um copo de vinho, esclarecer dúvidas e explicar melhor algumas coisas. É para esse momento que está a guardar a carne estufada em cocote – a tal que já enche a cozinha de um cheiro tentador.
É dia de falar de carne, portanto. E em primeiro lugar temos os diferentes cortes (em versão portuguesa e brasileira) com as explicações de qual o mais indicado para que tipo de confecção. Depois, as temperaturas e pontos de cozedura. E, entretanto, uma conversa sobre a forma como a alimentação foi evoluindo, com Hugo a recuar até aos anos 1960 e à moda da rejeição da gordura e do culto do corpo – e de como isso se reflectiu também na produção de carne, que se tornou mais seca e menos saborosa.
A seguir veio a pleasure revenge – “menos ginásios, mais spas” – com a cozinha tecno-criativa. E, por fim, a constatação de que, em grande produção industrial, muitos alimentos perderam o sabor, o que fez com que hoje a moda se voltasse para a cozinha de terroir, para o biológico, etc. No meio da conversa, bifes na frigideira. “Quem quer bem passado, médio e mal?”.
Mas houve também tempo para praticar com as facas (e outros instrumentos para cortar e descascar) – não na carne mas em vegetais que foram para o forno com um pouco de natas por cima, numa versão mais leve das batatas dauphinoise. Fiquei com o alho francês, que tinha que ser cortado em palitos fininhos, mas houve quem lutasse com a curgete, com a cenoura ou com a batata. No final, sucesso. E, depois de Irene ter lembrado que esta era uma receita vegetariana, ninguém largou uma lasca de dedo no meio dos vegetais.
Aula 5: Doces e sobremesas
Esta foi – a avaliar pelo meu caderno cheio de apontamentos em todos os espaços livres – a aula com mais matéria. Aprendemos a fazer massa de choux – e a usar um saco de pasteleiro (o resultado foram pequenos bolos de massa, com queijo, porque não podíamos comer apenas doces).
E a cozinha transformou-se num minicampo de batalha com cremes de vários tipos (chiboust de limão, por exemplo, mistura de creme pasteleiro com merengue), massa para crepes, outra, areada, para as tartelettes, creme inglês, telhas crocantes (rapidamente colocadas no forno), ganache de chocolate para as tartelettes (e um cheiro cada vez melhor a invadir toda a cozinha), por entre explicações sobre pontos de açúcar e as minhas tentativas (em equipa com o meu colega João) de criar farófias de tamanhos e consistência que parecessem vagamente semelhantes.
Falámos de tipos de açúcar – da rapadura ao açúcar invertido – e de como os gelados “levam quase tanto açúcar como os doces conventuais”, e ainda de farinhas e glúten, de formas de bater as claras em castelo e do uso de varinhas ou de batedeiras eléctricas para maior ou melhor incorporação de ar.
No final, depois de uma deliciosa sopa de cenoura e das bolas choux com queijo, as colheres mergulharam nas taças, desfazendo as tão perfeitas farófias, e voando de creme em creme até à ganache de chocolate, que foi a doce despedida deste curso. Na última aula já todos falavam de tudo, trocavam-se impressões sobre os melhores sítios para fazer mergulho e – heresia – discutiram-se até dietas. À saída, de caderninhos arrumados e aventais entregues (se não fosse a Irene, que desarrumação seria naquela cozinha!), todos acharam que era um até breve – “Vemo-nos nos módulos avançados, em Janeiro?”.
Feed Me Atelier de Cozinha
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Curso de Iniciados – 5 módulos, terças das 19h às 22h ou quintas ou sábados das 11h às 15h
Preço: 150 euros
A Feed Me tem, com preços diferentes, vários outros cursos dados por especialistas, do Curso Básico de Pastelaria, com Joaquim Sousa, a cursos de sushi e sashimi por Anna Lins e Paulo Morais, passando por comida indiana, grega, ou cozinha saudá