Fugas - restaurantes e bares

  • Daniel Rocha
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A Joya de Joy é uma casa de família e está em festa

Por Alexandra Prado Coelho

O Vila Joya é um pequeno paraíso sobre o mar algarvio onde todos os anos se reúnem alguns dos maiores chefs do mundo num festival que é um tributo à sua fundadora: Claudia Jung. Mas, para a filha, Joy, hoje à frente do hotel, o Vila Joya foi a “gémea” que recebia mais atenção do que ela. Até que Claudia morreu. “Foi aí que se tornou o meu destino.” O chef Dieter Koschina esteve sempre lá, nesta história de família que agora se celebra.

Joy Jung tinha uns três ou quatro anos, estávamos no início dos anos 1980 e o Algarve era um paraíso. A miúda loira alemã saltava “para cima e para baixo no banco de trás do carro” que transportava a família Jung do aeroporto até à casa, numa arriba sobre o mar, junto a Albufeira. “Os meus pais diziam-me ‘São só mais cinco minutos e chegamos’”. É a memória mais antiga que Joy tem desse “lugar sem nada à volta” e desse país, muito longe da Alemanha. “Quando a porta do avião se abria e o ar nos batia na cara, era como se tivéssemos chegado a outro planeta.”

Quando finalmente chegavam a casa, Joy desaparecia para os campos, onde corria atrás dos pastores, e para a chamar de volta a mãe tinha que lançar um sonoro assobio. “Havia uma grande liberdade no Algarve nessa altura. Para mim era animais, cavalos, mar. Não me lembro bem, mas sei que no início a casa não tinha água nem electricidade porque quando a compraram ela estava apenas 80% construída, por isso vinha um camião encher a banheira para tomarmos banho.”

Passaram-se muitos anos, Joy cresceu, a mãe, Claudia Jung, morreu, em 1997, e hoje é a filha quem está à frente de um hotel muito especial: o Vila Joya. Tão especial que Joy não gosta que lhe chamem hotel. “Gosto que o Vila Joya seja apenas uma casa.” É essa casa que vai receber, a partir do próximo dia 10 e até 15, o Tributo a Claudia, o mais importante festival de alta cozinha que se realiza em Portugal (desde 2007) e que foi o pretexto para esta conversa com Joy e com o chef do Vila Joya, Dieter Koschina.

Desde que comprou a casa, em 1978, com o marido, Klaus, que Claudia Jung sabia que queria fazer aqui um hotel diferente. “Quando viajávamos a minha mãe dizia que os hotéis não prestavam atenção à cozinha. Havia hotéis fantásticos e restaurantes que não prestavam. Ou restaurantes fantásticos mas que não estavam dentro de hotéis.” Ela queria que o Vila Joya tivesse a comida no centro de tudo.

Um dia, o chef de cozinha que ali trabalhava foi-se embora repentinamente e Claudia teve que resolver o problema. Ligou para o hotel de um amigo em Viena e pediu para falar com o chef. Quem atendeu, do outro lado, foi o sous-chef. Era um jovem austríaco chamado Dieter Koschina. É ele quem recorda esse momento: “Ela ligou, tinha uma voz grossa, parecia voz de homem, que não combinava com uma mulher graciosa como ela.” A folga do chef mudou a vida de Koschina. “Posso ajudar?, perguntei.” Passado algum tempo estava a chegar, de malas e bagagens, ao Algarve. Foi em 1991. Pensava que viria por um ano, mais ou menos. Nunca mais partiu.

A pen e o pimento

“Quando cheguei, pensei ‘Uau, o que é isto?’. É um paraíso, temos a natureza do Atlântico, a casa a dois minutos da praia, é só vestir os calções, mergulhar e ficar com a cabeça completamente limpa. Depois volto para cima, para o restaurante, com energia para trabalhar”, conta. No início, muitos dos produtos — sobretudo os de luxo — não existiam em Portugal e tinham que ser importados. Mas Koschina encantou-se imediatamente com o peixe. “Comecei a experimentar tudo. Como funciona este peixe? Todos os dias a pensar como fazer isto novo. Uma vez com citrinos, da próxima com pimentos, abóbora, a outra com ervas, a próxima com carne ou fígado. O importante para mim é a harmonia.”

“A minha mãe sempre disse que os austríacos têm uma mão especial para a cozinha”, diz Joy. Curiosamente, ela, enquanto era criança, não tinha qualquer interesse, sobretudo pela alta cozinha que se fazia no Vila Joya, onde vinha passar as férias várias vezes por ano. “Não gostava de ostras, de fígado, de caviar, muitos dos produtos de luxo desse tipo de cozinha”, confessa. “Quando estava no Vila Joya comia sempre comida de crianças.”

Claudia achava que os clientes que vinham com os filhos gostavam de jantar sossegados, por isso organizava uma grande mesa, debaixo de uma árvore, para o jantar das crianças. Joy, claro, era a responsável. “Éramos sempre umas 12 ou 13 crianças, e havia sopa, um prato principal e a sobremesa. Eu não gostava de sopa — hoje adoro. Por isso, quando os empregados se afastavam eu dizia aos outros miúdos ‘Vá lá, um, dois, três, colina abaixo’. Agora temos plantas lindas nesse sítio”, diz, com uma gargalhada.

Nesses primeiros tempos, o Vila Joya era muito procurado por alemães e austríacos. “A minha mãe não gostava de trabalhar com agências ou de pertencer a grupos de hotéis. Acreditava no boca a boca e como somos alemães era mais fácil vender o hotel na Alemanha.” Hoje, Joy acredita que o Vila Joya já não tem essa imagem de “enclave alemão no Algarve”. “Eu não sou muito ligada à Alemanha, sou uma cidadã do mundo e para mim é muito importante mudar essa imagem do Vila Joya. Apostei muito em trazer clientes de outros países e em promover o Vila Joya em Portugal. Hoje já temos muitos clientes portugueses.”

Quando Koschina chegou, em 1991, Joy era já uma adolescente — e em vias de se tornar uma adolescente rebelde. “Quando era pequena gostava muito do hotel, de atender o telefone, aceitar as reservas, estava muito na cozinha com os cozinheiros ou em cima do telhado a ver as pessoas lá em baixo. Mas depois, já adolescente, era muito complicada. Provavelmente tinha alguns ciúmes do hotel porque a minha mãe empenhava-se muito nele e não tanto em mim. Por isso comecei a dizer não a tudo.”

Recentemente encontrou um artigo publicado numa revista portuguesa depois da morte da mãe, no qual o pai dizia uma coisa que “foi um pequeno choque”: “Era exactamente assim que eu me sentia.” Klaus Jung contava: “Depois tivemos um segundo filho, e para que não houvesse problemas entre eles, demos-lhe o mesmo nome, chamámos-lhe Vila Joya.” Joy ficou a pensar nisso. “Era como se eu tivesse uma irmã gémea que era mais bonita, mais sexy, melhor na escola e que fazia tudo melhor do que eu.”

Tudo isso reforçava nela a convicção de que “não queria ter nada a ver com hotelaria”. Foi então que Claudia Jung adoeceu. Tudo foi muito rápido. Nove meses depois morria. “Foi quando a minha mãe adoeceu que percebi que o Vila Joya era o meu destino. E foi o Vila Joya que me deu muita força, ia até à praia, ouvir música e receber a energia do mar. Isso ajudou-me um pouco a ultrapassar a dor que a doença dela provocava. Não falámos muito sobre o facto de ela ir morrer, mas prometi-lhe que tomaria conta do seu outro bebé.”

Koschina foi, nessa altura, um grande apoio. “As poucas vezes que estive no Vila Joya — porque não ia lá muito nesse período — foi ele quem me abraçou. Tinha uma relação muito forte com a minha mãe. Mesmo agora, quando fala dela, fica com lágrimas nos olhos. O impacto que a minha mãe teve na equipa e em muitos clientes… ela deve ter sido uma mulher extraordinária e tenho pena de não a ter conhecido melhor. Senti que Koschina compreendia. Não conseguia partilhar isso assim com o meu pai porque as nossas dores estavam em níveis diferentes. Koschina deu-me colo e esperança nesse período.”

Joy correu mundo, foi aprender hotelaria noutros países, gostou especialmente da experiência na Índia, fez de tudo nos hotéis, cresceu. E com 26 anos voltou para tomar conta do Vila Joya. Não foi fácil voltar como dona e reencontrar Koschina. “Eu era muito jovem e tinha esperança que ele me recebesse como recebia antes. Mas demorou dois ou três anos até nos reencontrarmos.”

Koschina sorri também. A morte de Claudia foi igualmente um duro golpe para ele. “Ela queria muito ganhar a estrela Michelin, quando ganhámos a primeira ficou muito feliz, mas morreu um ano antes de eu ganhar a segunda. Foi triste.” Depois apareceu Joy, cheia de ideias. “Agora é ela a dona da casa, não é fácil, é uma nova geração que quer sempre coisas, coisas”, diz, no seu sotaque cerrado. 

Mas juntos encontraram um equilíbrio. Koschina é o guardião da elevada qualidade da cozinha, garantindo que os clientes saem sempre satisfeitos, e Joy entrega-se àquilo de que mais gosta: a criatividade. Não é por acaso que, na apresentação da edição deste ano do festival Vila Joya - Tributo a Claudia, a pen com a informação vinha enfiada num pequeno pimento verde.

“Gosto de coisas que surpreendam, que não sejam habituais”, afirma. “Não conseguiria dirigir o Vila Joya como um hotel normal, quero realmente fazer a diferença.” Quando olhou para o festival (que no ano passado não se realizou), achou que era preciso mudar alguma coisa. “Senti a necessidade de lhe dar mais psicologia. Pensei: o que posso mudar numa coisa que cresceu de forma tão extraordinária? Não vou conseguir ultrapassar isto, não é ultrapassável. O que posso fazer para marcar a diferença? A minha maneira de o fazer é dar-lhe carinho, torná-lo outra vez mais pequeno e diferente. Voltar às raízes e à festa. Onze dias com 150 clientes por noite não é uma festa para a equipa. E eu quero que todos possam participar na festa.”

Por isso, o Tributo a Claudia será, este ano, novamente uma festa de família: Klaus, o pai, fará 85 anos, e passaram 20 anos desde a atribuição da primeira estrela Michelin. É tempo de festa para o Vila Joya, tempo de voltar à tradição. “Koschina, Koschina…”, diz Joy abanando docemente a cabeça, “ele é a minha ligação ao passado, a minha tradição”.

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