Fugas - restaurantes e bares

  • José Avillez na cozinha do Vila Joya
    José Avillez na cozinha do Vila Joya Vasco Célio / Vila Joya
  • Os chefs portugueses (quase todos) reunidos antes do jantar
    Os chefs portugueses (quase todos) reunidos antes do jantar Vasco Célio / Vila Joya
  • Preparativos do jantar
    Preparativos do jantar Vasco Célio / Vila Joya
  • Ricardo Costa em provas
    Ricardo Costa em provas Vasco Célio / Vila Joya
  • As equipas atarefadas na cozinha
    As equipas atarefadas na cozinha Vasco Célio / Vila Joya
  • José Avillez durante os preparativos para o jantar
    José Avillez durante os preparativos para o jantar Vasco Célio / Vila Joya
  • O falso tomate, prato apresentado por João Rodrigues
    O falso tomate, prato apresentado por João Rodrigues Vasco Célio / Vila Joya
  • Açorda de gambas, de Leonel Pereira
    Açorda de gambas, de Leonel Pereira Vasco Célio / Vila Joya
  • O tamboril de Miguel Laffan
    O tamboril de Miguel Laffan Vasco Célio / Vila Joya
  • A francesinha na versão de Ricardo Costa
    A francesinha na versão de Ricardo Costa Vasco Célio / Vila Joya
  • O falso tomate, prato de João Rodrigues
    O falso tomate, prato de João Rodrigues Vasco Célio / Vila Joya
  • Cuscuz da Madeira com carabineiro por Benoît Sinthon
    Cuscuz da Madeira com carabineiro por Benoît Sinthon Vasco Célio / Vila Joya
  • Polvo à lagareiro, o prato de Miguel Rocha Vieira
    Polvo à lagareiro, o prato de Miguel Rocha Vieira Vasco Célio / Vila Joya
  • Salmonete, choco e alcaparras, de Pedro Lemos
    Salmonete, choco e alcaparras, de Pedro Lemos Vasco Célio / Vila Joya
  • O cozido à portuguesa na versão de José Avillez
    O cozido à portuguesa na versão de José Avillez Vasco Célio / Vila Joya
  • A cataplana de Dieter Koschina
    A cataplana de Dieter Koschina Vasco Célio / Vila Joya
  • O pombo com xarém algarvio e suspiro de morcela, por Henrique Leis
    O pombo com xarém algarvio e suspiro de morcela, por Henrique Leis Vasco Célio / Vila Joya
  • Bochechas de porco e queijo açoriano, por Hans Neuner
    Bochechas de porco e queijo açoriano, por Hans Neuner Vasco Célio / Vila Joya
  • A horta da infância de Vítor Matos
    A horta da infância de Vítor Matos Vasco Célio / Vila Joya
  • Os chefs de Munique
    Os chefs de Munique Vasco Célio / Vila Joya
  • O chef Eckart Witzigmann, um dos Mestres de Munique
    O chef Eckart Witzigmann, um dos Mestres de Munique Vasco Célio / Vila Joya
  • Preparativos do jantar dos Mestres de Munique, que encerrou o festival Vila Joya 2015
    Preparativos do jantar dos Mestres de Munique, que encerrou o festival Vila Joya 2015 Vasco Célio / Vila Joya

Os chefs portugueses regressaram à infância

Por Alexandra Prado Coelho

São 13 pratos e muitas memórias: a pedido do festival do Vila Joya, os chefs portugueses com estrelas Michelin regressaram aos sabores que os marcaram quando eram pequenos. A reinterpretação de alguns dos mais tradicionais pratos da cozinha portuguesa.

Lembram-se da cena do filme Ratatouille em que o implacável e austero crítico gastronómico Anton Ego prova uma garfada de um prato de ratatouille e, de repente, todo o rosto se transforma, invadido por uma expressão quase doce, enquanto é transportado de volta para a infância e os pratos de sabores simples que a mãe lhe preparava?

Era impossível não nos lembrarmos desse momento na cozinha do Vila Joya, no sábado passado, penúltimo dos seis dias do festival gastronómico Tributo a Claudia organizado pelo hotel algarvio. A cozinha estava cheia de chefs portugueses distinguidos com estrelas Michelin a prepararem os respectivos pratos. A todos tinha sido pedido o mesmo: que fizessem algo que lhes recordasse a infância. Seriam eles capazes de nos fazer viajar no tempo para algum lugar da nossa infância?

José Avillez, Belcanto
Cozido à portuguesa
O cozido era um prato de referência em casa dos avós, a Quinta de São José da Bicuda, em Cascais, ainda antes de ele nascer. “Todos os domingos o meu avô fazia um cozido aberto a quem quisesse vir. Chegavam a ser 60 ou 70 pessoas”, conta Avillez. Neste caso, tem “um centímetro quadrado de carne” (papada de porco) e todo o sabor está no caldo. Faz parte da carta do Belcanto, mas no Vila Joya, entre 13 outros, o desafio era ainda maior: “Transportar as pessoas para a minha infância, que provavelmente é também a de muitas delas, em apenas duas colheradas.”

Leonel Pereira, São Gabriel
Açorda de gambas
Quando era criança, Leonel Pereira vivia no Algarve interior, onde o prato mais comum, “aquele que toda a gente sabia fazer”, era a açorda. “Faz-me pensar nos meus avós, que já cá não estão, e que comiam a açorda mais simples que há, só com um ovo.” Ele apanhou uma época de maior abundância. “Já se punha um bocadinho de peixe ou camarão.” Na adaptação que aqui fez (usando carabineiro), teve “o cuidado de partir dessa simplicidade” e de “garantir que está lá tudo”. Sente que este “é um jantar de emoções, porque o que nos estão a pedir é um bocadinho de nós.”

Henrique Leis, Henrique Leis
Pombo, musseline de xerém algarvio, suspiro de morcela de Monchique
Brasileiro da Amazónia, há 26 anos em Portugal, Henrique Leis não esqueceu as origens: “Na minha terra criava a caçava pombos e ao domingo a minha irmã cozinhava pombo.” Daí que tenha escolhido esta carne para base do seu prato. Mas foi também buscar o xerém algarvio, lembrando-se que no Brasil existe igualmente um xerém mas “de arroz” e no qual usam “caldo de piranha, um peixe delicioso”. Fez ainda um suspiro de morcela de Monchique e amêijoas com crumble de morcela, misturando a carne e o marisco, tal como no Brasil o pombo convivia com o caldo de piranha.

Pedro Lemos, Pedro Lemos
Salmonete, choco, alcaparras
“Para mim foi muito claro”, conta. “Pensei no lado materno, transmontano, e usei as alcaparras por causa das azeitonas, já que estamos na altura da apanha delas.” Depois pensou na comida de tacho e de conforto e do lado paterno, ligado ao negócio do peixe, foi buscar a ideia do choco braseado e do salmonete com o molho do assado no tacho. Procurou os sabores da “azeitona muito verde” e “o lado iodado do salmonete”. No final, a ideia principal é a de que se pode extrair o sabor das coisas mais simples como os ossos ou as espinhas.

Ricardo Costa, The Yeatman
Sanduíche de barriga de atum com molho de francesinha
É uma versão de francesinha muito pessoal, a que Ricardo Costa trouxe ao Vila Joya. Vem embrulhada num papelinho preso a uma mola, como a verdadeira comida de rua, mas no interior está uma mini-sanduíche feita com a parte mais nobre do atum, o toro, e que vem com molho de francesinha, feito com um caldo de carne e crustáceos. “Não tem a ver com a minha infância, para isso trazia caldeirada de raia ou os ovos moles da minha terra, Aveiro”, admite Ricardo Costa. Mas tem tudo a ver com o Porto e, das propostas que enviou para o Vila Joya, foi esta a escolhida.

Miguel Laffan, L’AND Vineyards
Tamboril
Encontramos Miguel Laffan junto aos tabuleiros onde estão mergulhados lombos de tamboril numa salmoura. “Gosto muito da cozinha de conforto à volta do peixe”, explica. O tamboril está a ganhar sabores — e cor — graças ao sal, ao açafrão, à laranja, ao anis, ao gengibre. Laffan vai servi-lo com ouriço-do-mar em cima e ainda um puré de funcho com aneto, e, ao lado, “uma horta marítima” com plantas que crescem junto ao mar. Junta-se aqui o gosto pelos produtos do mar e o facto de a mãe, inglesa, usar na sua cozinha influências de sabores exóticos de outros países.

João Rodrigues, Feitoria
Tártaro de lagostim, gaspacho de gengibre e falso tomate
Vem escondido, dentro de um prato meio tubular, o falso tomate que João Rodrigues apresentou. Com ele quis trazer os sabores que lhe são mais próximos e fazer “uma espécie de despedida do Verão”. No Feitoria apresenta este prato com um tártaro de carapau, mas aqui, a pedido do Vila Joya, usou antes o lagostim. O tártaro de lagostim é envolvido numa gelatina feita com sumo de tomate temperado. Aqui “aquilo que parece não é”, num jogo de ilusões. Mas, no fundo, a memória “do gaspacho com carapauzinhos fritos” está lá.

Miguel Vieira, Fortaleza do Guincho
Polvo à lagareiro
Miguel Vieira também brinca com a ilusão. Este polvo é um rabo de porco? Retorcido e branquinho, totalmente limpo, o tentáculo de polvo poderia ser de um suíno. Mas não é. Trata-se apenas de um prato que Miguel Vieira gostava de comer quando era pequeno e a família ia a um restaurante — e, como cresceu em Cascais, o polvo estava sempre presente. “Podia contar aqui uma história muito bonita, mas o facto é que eu não tenho memórias de infância ligadas à comida. Até aos vinte e poucos anos só comia por necessidade”, confessa. 

Hans Neuner, Ocean
Bochechas de porco, queijo açoriano
Também o austríaco Neuner optou por não fazer um regresso à infância, pelo menos não a dele. “Um amigo português conta-me que quando se cozinha a cabeça de porco e se pressiona todas as carnes chama-se a isso, em Portugal, queijo de porco.” Decidiu brincar com a ideia. Criou umas caixinhas redondas e serviu a bochecha de porco com queijo e pickles de cebolinha. Não um queijo qualquer, mas uma descoberta que fez nos Açores e o encantou: queijo de São Jorge com 24 meses de cura. Não hesita em compará-lo ao parmesão italiano e em defender que “podia ser vendido por todo o mundo”.

Benoît Sinthon, Il Galo d’Oro
Cuscuz da Madeira, carabineiro, lúcia-lima
O cuscuz madeirense foi o primeiro produto que provou quando chegou à Madeira, há perto de vinte anos. Foi-lhe servido em casa da sogra e, ao prová-lo, Benoît lembrou-se da sua infância em França onde uma vizinha fazia o cuscuz marroquino, com borrego. “Fiz um pudim de funcho, por causa do Funchal, e combinei-o com carabineiro do Algarve.” Para este cuscuz “um pouco malandro”, criou ainda um caldo com as cabeças dos carabineiros e lúcia-lima. E assim se cruzam França, Madeira e Algarve num prato só.

André Silva, Largo do Paço
Bacalhau e as suas ovas
Bacalhau — e poderia não haver bacalhau? “Não há nada mais genuíno na nossa tradição”, diz André Silva. E é uma memória de infância. “Venho de uma família pobre e o bacalhau era um prato fácil e barato, que o meu pai cozinhava muitas vezes”, recorda. Trouxe um bacalhau que passa 24 horas em vácuo com alho, louro, salsa e azeite e é servido com creme de pimentos assados, esmagada de grão com salsa, alho e cebola, sorvete de cebola caramelizado, creme de alho branqueado, espuma de salsa, esferificações de azeitona e broa de milho frita e desidratada, que lhe dá o crocante.

Dieter Koschina, Vila Joya
Cataplana
Porquê a cataplana, chef Koschina? “Porque não?”. Nada a ver com a sua infância na Áustria, claro, mas tudo a ver com a sua segunda vida, em Portugal, onde chegou há 24 anos para trabalhar no Vila Joya. Lembra-se que provou cataplana pela primeira vez em 1991 e que se surpreendeu com esta mistura de terra e mar que, diz, só existe em Portugal e Espanha. “Há dez anos a cozinha portuguesa era muito tradicional”, afirma. “Hoje há uma nova cozinha portuguesa, em que os pratos tradicionais têm outra apresentação e outras técnicas. Já não é uma cozinha de casa, é uma cozinha gourmet.”

Vítor Matos, Antiqvvm
Horta da minha infância
O açúcar e os doces não fizeram parte da infância de Vítor Matos. Mas no Vila Joya calha-lhe sempre a sobremesa. Tinha dito que preferia fazer um prato salgado, porque nasceu numa família pobre e o que havia era batatas e couves, as coisas da horta. Mas surgiu uma solução: porque não uma sobremesa inspirada nessa horta da sua infância, na velha casa de Trás-os-Montes? Apresentou um prato onde desfilou um enorme conjunto de sabores: cenouras, pepino, beterrabas e abóbora em xarope de sabugueiro, gel de coco e beterraba, pinhões de Alcácer do Sal, pão de pistácios, sorvete de tangerina. E um vaso, regado à mesa, com “terra” de chocolate, uma “abóbora” de requeijão e Seia, “beterraba” com avelãs de Viseu e “tomate” com queijo de Azeitão. 

Os aventais que transportam memórias
O chef João Rodrigues passeava-se na cozinha do Vila Joya com um avental com uma chuva de estrelas na praia da Ursa, Leonel Pereira trazia andorinhas e a sua fotografia com cinco anos, Hans Neuner tinha a sua foto, adolescente, ao lado do pai e do irmão, orgulhoso da sua família de cozinheiros.

Muitos dos chefs que durante os seis dias do festival passaram pelas cozinhas do Vila Joya receberam um avental personalizado, com algumas das mais queridas memórias de infância — e com a assinatura da Bainha de Copas, o projecto que se propõe reinterpretar o património através de peças de roupa.

A responsável, Graça Martins, conta que algumas das peças da Bainha estão à venda na loja do Vila Joya. Com a aproximação do festival, Joy, a proprietária, desafiou-a a pensar numa ideia diferente. “Pensei que muitas vezes as coisas mais interessantes sobre os chefs, aquilo que os fez chegar até aqui, ficam por dizer”, conta Graça. Decidiu pedir-lhes que partilhassem uma memória de infância — já que esse era também o mote para os pratos que iam criar para o jantar — e o resultado foram 29 aventais personalizados.

“Foi muito bonito receber as histórias e as imagens deles. O chef Miguel Laffan enviou até a primeira jaleca e a primeira faca que usou”. Depois, o trabalho de Graça foi traduzir essas memórias em imagens. “Fazer algo que eles pudessem dizer ‘isto é meu’ e, ao mesmo tempo, os levasse a partilhar essa história com mais alguém”.

A noite dos mestres de Munique no Vila Joya

Domingo, a última noite do festival gastronómico do Vila Joya, em Albufeira, foi um regresso às origens do chef Dieter Koschina. A sua cozinha encheu-se dos antigos mestres, naquela que foi também uma homenagem a Munique, cidade-berço da alta gastronomia na Alemanha.

E no meio destes “Munich Maestros” estava uma figura de referência: Eckart Witzigmann. O chef nascido na Áustria foi um dos quatro cozinheiros do mundo a ser distinguido como Chefe do Século pelo guia francês Gault Millau, ao lado de nomes como Paul Bocuse, Joël Robuchon e Frédy Girardet. E foi Witzigmann, ele próprio discípulo de Bocuse e o primeiro germanófilo a receber três estrelas Michelin, um dos mestres de Koschina.

Num festival que teve como mote o regresso à tradição, mas sempre ligada à criatividade, nada melhor do que encerrar as seis noites de grandes jantares com um show a várias mãos e um desfile de pratos da mais alta cozinha que se faz na Alemanha.

Antes do jantar encontramos Witzigmann, com os seus companheiros, a beber um copo de vinho no terraço do Vila Joya. O que é preciso fazer-se para se chegar a Chefe do Século?, perguntamos-lhe. “Eu iniciei uma nova forma de cozinhar na Alemanha. Fui um messias”, responde, sem falsas modéstias, mas com uma gargalhada. Foi no início da década de 1970 que, depois de um périplo pelo mundo, em que descobriu a nouvelle cuisine, regressou a Munique e tentou aplicar aí o que tinha aprendido.

Mas havia um problema: “Era demasiado cedo.” O público alemão não estava preparado para este tipo de cozinha. Não percebia que os vegetais deviam ser al dente e não excessivamente cozidos, como era habitual. E não entendia todo o trabalho que Witzigmann estava a desenvolver usando os produtos frescos e da estação, como faziam os grandes chefs em França por essa altura. “Hoje tudo isso é normal, produtos frescos, ervas”, as coisas que Bocuse lhe mostrava quando o levava ao mercado. “Ele era duro, muito duro, mas tem um bom coração”, recorda.

No jantar do Vila Joya, Witzigmann apresentou tártaro de novilho, mousse de rábano, beterraba e caviar imperial e, num segundo prato, sela de veado, fígado de ganso fumado, boletos e gratinado de pumpernickel, um pão de centeio escuro típico da Alemanha.

Todo o jantar “germânico” foi marcado pelo uso de produtos de luxo: Koschina juntou vieira, batata e caviar e, noutro prato, agnolotti (massa italiana em forma de pequenas almofadas) com molho de carbonara e trufas de Alba. Outro dos chefs convidados, Hans Haas, elegeu o fígado de pato, que serviu com ovo escalfado, puré de alcachofra de Jerusalém e molho de trufas do Périgord.

Os outros três chefs deixaram-se inspirar pelo marisco português: Peter Knogl juntou carabineiro com algas e limão; Heinz Winkler fez um carpaccio de lavagante com croutons; e Otto Koch apresentou lagostim com flores do Verão, salicórnia e molho feito com nougat. Koschina — que fez ainda a sobremesa, com pera, chocolate e amendoim — estava no melhor de dois mundos: com os seus mestres de Munique e os produtos do mar português que o encantam há 24 anos.

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