É a mais directa consequência da estrela Michelin. Rui Silvestre, o cozinheiro do restaurante algarvio Bon Bon cujo trabalho acaba de obter o reconhecimento do mais famoso e influente guia gastronómico, o Michelin, anda agora numa espécie de tournée ao estilo do mundo artístico para corresponder à solicitação de colegas de vários pontos do país. Não há música nem efeitos de luz, mas apenas muito sabor e criatividade. Ainda bem, que é assim oportunidade para muitos mais tomarem contacto com a sua cozinha sem terem que aguardar pelo Verão ou antecipar a deslocação ao Algarve.
Mesmo assim, haveria sempre necessidade de esperar até ao fim da primeira semana de Fevereiro, uma vez que os responsáveis do Bon Bon tinham já antes decidido aproveitar este Inverno para efectuar melhoramentos nas instalações do restaurante do Carvoeiro. Iniciativa não só premonitória, mas que se revela também muito oportuna, já que Rui Silvestre necessitava de mais condições, sobretudo ao nível da cozinha, para mostrar as razões que levaram os exigentes inspectores da Michelin a elevá-lo ao estrelato apenas ano e meio depois de ter chegado ao Algarve.
É, pois, na nova condição de estrela que o chef é agora requisitado para os mais diversos palcos. Papel para o qual, diga-se, o seu estilo simples e retraído parece ainda pouco adaptado. A cozinha é o seu espaço e é nele que parece querer concentrar-se. Assim o consiga!
Encontrámo-lo no final da passada semana no centro do Porto, no restaurante Book, a convite do colega Elísio Bernardes. Já nesta quinta-feira associou-se a Diogo Rocha, no Mesa de Lemos, nos arredores de Viseu, e volta esta noite ao Porto, ao Antiqvvum, de Vítor Matos.
Há três semanas, numa curta e atribulada conversa por entre a emoção e incidências do anúncio da estrela Michelin, em Santiago de Compostela, na Galiza, falava-nos de uma “cozinha de produto assente em peixes e mariscos”, uma descrição que rapidamente se constata ser curta e até errónea, já que demasiado modesta e redutora face ao que se pôde apreciar neste jantar do Book. Mesmo assim, simples e despretensioso.
Produto cuidado, sim, mas sempre com um fundo de sabores definidos e muito bem trabalhados, com alarde de técnica e criatividade. Mesmo nas coisas aparentemente mais singelas, nota-se um cunho distintivo e pessoal que fazem ver em Rui Silvestre um cozinheiro assertivo e singular. E foi isso, precisamente, que destacava a nota da Michelin que anunciou a atribuição da estrela: “Uma cozinha interessante, que surpreende pelo seu nível técnico. Baseada numa selecta matéria-prima, propõe pratos de estilo actual, com sabores definidos.”
Neste encontro do Book, Rui Silvestre teve a companhia de outra estrela maior do nosso panorama: o enólogo Anselmo Mendes, o senhor Alvarinho, como é muitas vezes designado, que não só tem colocado os vinhos de Monção e Melgaço ao nível do melhor que há no mundo, mas que, a par do carácter simples e despretensioso de personalidade, partilha também com o chef uma genial assertividade.
O cozinheiro do Bon Bon começou com uma esferificação de azeitona. Toda a sensação do fruto oleico (da variedade Galega?) a explodir na boca e a conquistar o palato. Seguiu-se um torresmo (falso) com abacate, numa genial, criativa e elegante construção que deixava todo o sabor e sensação crocante do tradicional torresmo espevitado por leve toque de malagueta. Bebia-se o Muros Antigos 2012 e crescia a envolvência e complexidade de sabores com Ferrero Rocher de foie gras, amendoim e chocolate.
Rendido à harmonização, Anselmo Mendes lançou o alerta: “Atenção que temos aqui um chef rock’n’roll”. Na sua sabedora experiência, o enólogo definia com exactidão a essência da cozinha de Rui Silvestre. “Começa com acordes harmónicos, tudo muito certinho, muito seguro, e vai depois criando intensidade e disparando para todos os lados”, disse, enquanto destacava a frescura e mineralidade dos seus vinhos e o crescente reconhecimento e apetência pelas suas qualidades de envelhecimento.
E o interessante é que, mesmo sem qualquer tipo de contacto prévio com cozinheiro, o enólogo destacava aquele que será talvez o seu ponto mais distintivo e personalizado: o fundo de sabor sempre presente e o ritmo crescente com que vai introduzindo exigência e complexidade de sabores.
Rui Silvestre consegue sempre também uma envolvência entretida, com algum humor até, na forma como emprata e leva à mesa. Seja pela variação e surpresa nos ingredientes ou pela deliberada falta de informação sobre os mesmos e a suscitar conversa, curiosidade e debate. Há envolvência de ervas frescas que se cruzam com sabores terrosos, gengibre, wasabi ou malaguetas que avivam sabores da nossa memória culinária.
E houve até uma sertã que veio à mesa com um livro a servir de base, ou o restaurante não se chamasse Book (livro, em inglês) e eles abundassem na decoração. Noutro caso, os cogumelos refogados foram servidos sobre a película aderente que cobria uma caçarola preenchida com palha e ervas secas, utilizando-se uma pinça para comer os cogumelos. Surpreendente e entretido, sem dúvida.
À ostra, o chef associou rabanete, sementes de girassol e uma clorofila miniatura que pareceu agrião. Genial e saborosa a posta de raia, com um fundo suave de cebola caramelizada, puré de alho francês e envolvência fresca e vibrante de wasabi. Cozinha pura de sabor e técnica. A mesma complexidade e harmoniosa envolvência nos cogumelos (Boletus) com parmesão, fava tonka e gengibre, num jantar que até ao último prato dispensou o uso da faca.
A excepção veio com o peito de pato — de pele crocante e carne rosada — com alcachofra, nabo, rabanete e um elegante rolinho de pickle de cenoura. Sabor, finesse e elegância idênticas ao do Pardusco, um tinto da zona de Melgaço no qual Anselmo Mendes recupera castas e técnicas que vêm dos tempos dos beneditinos e deveria ser de prova obrigatória para quem queira falar em vinhos portugueses.
Ainda nos vinhos, por entre a classe que mostra a evolução dos Muros Antigos 2012, Alvarinho Contacto 2010 e Alvarinho Curtimenta 2011, há que assinalar a extraordinária frescura do Muros Avesso 2014, casta que crescentemente se afirma entre os grandes brancos.
Rui Silvestre e Anselmo Mendes não se conheciam nem sequer trocaram ideias prévias, mas quando há génio e qualidade, a harmonia é apenas uma consequência. Um recital de muito boa memória.
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Singularidades de um cozinheiro rock’n’roll