Fugas - restaurantes e bares

  • Ljubomir Stanisic e o seu Inside the mind, feito com mioleira, rins e tártaro de cabrito;
    Ljubomir Stanisic e o seu Inside the mind, feito com mioleira, rins e tártaro de cabrito; Nelson Garrido
  • Ljubomir Stanisic e o seu Inside the mind, feito com mioleira, rins e tártaro de cabrito;
    Ljubomir Stanisic e o seu Inside the mind, feito com mioleira, rins e tártaro de cabrito; Nelson Garrido
  • Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta
    Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta DR
  • Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta
    Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta DR
  • Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta
    Cinzas de Pedro Pena Bastos: No Cinzas não há motivo para preocupações. Há apenas lula, alho francês e queijo debaixo de uma renda preta DR
  • João Rodrigues: Folhas e tutano
    João Rodrigues: Folhas e tutano Nuno Ferreira Santos
  • Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas)
    Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas) DR
  • Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas)
    Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas) DR
  • Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas)
    Pedro Almeida: Tempura de carapau (e outras coisas) DR

Abra a boca e feche os olhos

Por Alexandra Prado Coelho

Comemos tudo que nos dão? Desafiámos quatro chefs a fazer pratos que, à partida, ninguém nunca pediria. Afinal, é tudo uma questão de confiança.

Miolos, rins, tutano, esperma de peixe, um misterioso prato negro: você comia isto? Pedimos a quatro chefs que apresentassem pratos que desafiassem a nossa confiança neles. Porque, afinal, a vida em sociedade baseia-se na confiança. Confiamos no taxista que nos transporta, no médico que nos trata, no cabeleireiro que nos corta o cabelo e, claro, nos cozinheiros que cozinham para nós. De cada vez que nos sentamos à mesa de um restaurante estamos a fazer uma declaração de fé. Olhamos a carta, escolhemos, acreditamos que vai ser bom.

Mas, diz a maioria dos chefs, somos conservadores nas nossas escolhas. Pratos com nomes estranhos ou referências a partes dos animais menos consensuais que lombo ou filete nunca são escolhidos. E, no entanto, curiosamente, somos um povo que num restaurante tradicional não hesita em pedir tripas à moda do Porto ou mãozinhas de vaca. Vivemos num país que desde sempre aprendeu a aproveitar o porco todo — muito antes do nose to tail ser moda nos melhores restaurantes norte-americanos.

No mundo da alta cozinha, os chefs vão arriscando: umas cristas de galo aqui, uma língua ali, uma mioleira hoje, uns pés de galinha amanhã. Só mesmo por teimosia, ou para marcar a diferença, é que criam pratos destes, porque ninguém os pede. Ou então introduzem-nos, discretamente, em menus de degustação, esperando que os clientes só perguntem o que era depois de terem comido — e gostado.

A cozinha também serve para isso, para provocar, para nos levar a questionar certezas, para nos mostrar que somos preconceituosos, para nos fazer sair da nossa zona de conforto, para descobrir que há mais sabores no mundo e perceber que, afinal, gostávamos de uma coisa que sempre tínhamos pensado detestar.

Mas para isso precisamos de bons cozinheiros, em quem confiemos sem reservas. Deixamos-vos nas mãos de Ljubomir Stanisic (100 Maneiras), Pedro Almeida (Midori), João Rodrigues (Feitoria), e Pedro Pena Bastos (Esporão). À confiança.

Ljubomir Stanisic
Inside the mind de um cabrito

“É preciso ter tomates” para provar este prato. Quem o diz é o seu próprio criador, Ljubomir Stanisic. Mas, como se sabe, o chef do 100 Maneiras, em Lisboa, gosta de chocar. E gosta de entranhas, claro. Daí que tenha decidido fazer um prato com mioleira, rins e tártaro de cabrito. “É uma sinfonia de entranhas”, diz, orgulhoso do resultado.

Fez este prato pela primeira vez há muito tempo — “talvez em 2005 ou 2006” — e serviu-o então ao crítico gastronómico do PÚBLICO David Lopes Ramos, falecido em 2011. E não se esquece do momento em que este se levantou da mesa e lhe deu um abraço para lhe mostrar o quanto tinha gostado.

Agora, que acaba de receber aquele que descreve como “o prémio mais emocionante de sempre” — o Prémio Gastronomia David Lopes Ramos, da Revista de Vinhos — o abraço regressou-lhe à memória ainda com maior intensidade.

Passaram-se dez anos e o prato evoluiu desde que o apresentou a David Lopes Ramos, “sobretudo no empratamento”, que isto de empratamentos tem as suas modas e uma década faz toda a diferença. Mas de uma coisa Ljubomir não tem qualquer dúvida: “Este é um dos melhores pratos de entranhas que se pode comer.”

Para o molho é feita uma redução de vinho com chalotas à qual se junta crème fraiche, trufas picadas e vários produtos da horta. A mioleira, que é panada e cortada ao meio, tem um toque crocante no exterior que contrasta com a textura no interior, e há ainda uma minitosta de pão com o tártaro de cabrito e chips de tubérculos. No meio disto tudo, rebentos de flores, “que dão um toque ácido e refrescante”.

Não será um prato fácil de vender, mas, garante, é tão bom que vai entrar no menu de degustação do 100 Maneiras. Reconhece que o problema de um prato como este é quando se descreve o que ele tem. Muitas pessoas travam a fundo logo que ouvem falar de entranhas e, sobretudo, de mioleira. Claro que chamar-lhe Inside the Mind pode ajudar… ou talvez não. 

Até na sua cozinha houve elementos da equipa que disseram “nem pensar”, não iam provar aquilo, mas quando viram o prato pronto, acabaram por não resistir e gostaram imenso. Ou seja, para além de “ter tomates”, é preciso ter confiança no chef. E se ele diz que, em matéria de entranhas não há nada melhor… vamos a isso?

Pedro Almeida
Tempura de carapau (e outras coisas)

“Se apresentasse este prato a um cliente estrangeiro, a reacção dele seria ‘não, obrigado’”, garante Pedro Almeida. Mas o chef do Midori, na Penha Longa, Sintra, está confiante de que pelo menos alguns portugueses avançariam sem medo para o que aqui nos propõe.

E de que se trata exactamente? Traz para cima da bancada um prato com carapaus, uma cabeça de pampo e algumas facas. “Isto que vos vou mostrar é uma coisa que os japoneses adoram no carapau, no bacalhau e no fugu, ou peixe-balão”. Abre a barriga de um carapau e extrai do interior algo que parece um saco de ovas mas com uma textura diferente, mais lisa, e de cor mais esbranquiçada. “É o saco de esperma do carapau.”

Começamos bem, portanto. Breve explicação sobre os métodos de reprodução dos peixes — o esperma é lançado na água, onde encontra os ovos e os fecunda — para nos esclarecer sobre o tamanho do saco. Coloca-o debaixo de água corrente e lava-o cuidadosamente. “O sushiman tem que estar muito treinado, porque é preciso encontrar os parasitas que o peixe possa ter, uma espécie de ténia que se aloja nos intestinos.”

Totalmente limpo, o saco de esperma é posto num prato enquanto avançamos na tarefa de aproveitar o que raramente se aproveita de um peixe. Da cabeça de pampo, Pedro Almeida extrai primeiro as bochechas. “As cabeças de peixe eram uma coisa que se comia antigamente e hoje toda a gente está a fugir delas.”

Depois vira o peixe e, com gestos firmes, tira-lhe as guelras. As guelras também?, pensamos. Mas tudo bem. Confiamos. “Daqui a única coisa que podemos aproveitar é aquilo a que chamamos a crista, que é uma cartilagem. O sabor não é uau, mas é supercrocante.” No Japão, isto não surpreenderia ninguém porque “eles são exímios a aproveitar todo o peixe”. Incluindo a espinha, que o chef põe a fritar depois de lhe retirar, com toda a perícia, os filetes. Também as guelras já estão a fritar.

O resto, bem, o resto é tempura. Passa-se os pedaços de peixe pelo polme, deixa-se fritar, junta-se uma folha de shiso (ou salsaparrilha), faz-se um dashi de citrinos e couve-rábano, coloca-se umas ramas de cenoura (“para continuar no tema das coisas que ninguém come”, lembra Pedro) e serve-se, com as guelras fritas por cima.

Só falta mesmo dar um nome ao prato (que, mesmo que não esteja na carta do Midori, “pode sempre ser pedido”). Pedro Almeida faz um sorriso. “Temos que arranjar um nome de maneira a que as pessoas não fujam”. Tempura de carapau é rigoroso. Mas em que momento explicamos que inclui o esperma do peixe?

Pedro Pena Bastos
Cinzas

O que fazer quando nos colocam à frente um prato preto? Não o prato em si, mas o seu conteúdo. Ou seja, aquilo que vamos efectivamente comer. A única hipótese é… confiar. É isso que Pedro Pena Bastos faz desde há algumas semanas aos clientes que, no seu restaurante na Herdade do Esporão, Reguengos de Monsaraz, Alentejo, pedem o menu degustação Tempo da Terra. Apresenta-lhes, entre vários outros, um prato a que chama, simplesmente, Cinzas.

“A partir do momento em que o prato entra no menu de degustação, as pessoas provam e adoram”, diz. E, na verdade, não há nada para não gostar. Trata-se apenas de um estufado de lula, feito com um caldo de lula grelhada no carvão, alho francês, também levemente marcado na grelha e um creme de queijo com o chèvre da Granja dos Moinhos. “O Adolfo Henriques, que faz este queijo, usa também carvão para fazer o desenvolvimento microbiano das leveduras que o cobrem.” Continuamos no universo das cinzas, portanto.

A grande diferença é que o prato está escondido por uma espécie de crosta rendilhada feita de tinta de choco e especiarias. “A maior parte das pessoas associa a cor preta ao queimado”, afirma Pedro Pena Bastos. “A mim não, faz-me lembrar esta parte do pão [aponta para o pão feito no restaurante] que é óptima, ligeiramente amarga. A ideia deste prato é ser algo que vai ao carvão mas que é fresco ao mesmo tempo, por causa do alho francês, que nesta altura temos em grande quantidade na nossa horta, e do queijo.”

Falar das coisas como elas são faz parte da postura de Pedro Pena Bastos no Esporão, onde chegou há um ano e meio. Basta segui-lo no Instagram para perceber ao que vamos. Há, entre imagens de pratos lindíssimos, fotos de carne a maturar ou de um pombo-torcaz em cima de uma tábua ensanguentada.

Pedro lança-se a falar a falar do tema, entusiasmado: “Tudo o que é caça, pombos, perdizes, são animais que respiram muito, logo têm imenso sangue. Quando os desmanchamos estão muito húmidos e isso não facilita a confecção. O que fazemos é agarrar na carcaça, limpá-la toda e deixá-la a secar três dias em panos absorventes que vão sendo trocados. Quando o animal já perdeu a humidade começamos a fazer o processo de maturação, enchemos as carcaças com feno e cobrimos toda a peça também com feno.”

E isso é assunto que chegue à mesa? Aqui, sim, claro. Estamos no meio do campo alentejano. “Fazemos questão de explicar isso as pessoas porque é a única forma de nos distinguirmos e mostrarmos um bocadinho mais do que é nosso.” Mas no Cinzas não há motivo para preocupações. Nem carne maturada nem pombos sanguíneos. Apenas lula, alho francês e queijo, tudo debaixo de uma misteriosa renda preta que esconde mais do que revela. Confiam?

João Rodrigues
Folhas e tutano

Em casa dos pais, João Rodrigues, chef do Feitoria, no Hotel Altis Belém, costumava comer umas caras de bacalhau acompanhadas com couves e ele lembra-se ainda desse contraste entre o lado gelatinoso das caras de bacalhau, que quase faziam colar os lábios, e as couves, ligeiramente amargas, a limpar o palato.

A memória inspirou-o a fazer um prato mas invertendo as coisas. Usou bacalhau fresco, juntou-lhe o “sabor terroso” das folhas (acelgas, grelos, espinafres, folhas de beterraba, mizuna, beldroegas de Inverno, trevos, nabiças, o que vai recebendo da Quinta do Poial, em Azeitão) e procurou o elemento que desse o lado gelatinoso: o tutano, ou seja, a medula óssea. Aqui, ao contrário do prato da sua infância, era o bacalhau fresco que tinha a função de limpar o palato.

Deu-o a provar a amigos e todos concordaram numa coisa: não era preciso o bacalhau; as folhas envoltas no jus de vitela e tutano eram um prato por si só. E foi assim que o fez, juntando-lhe apenas pedacinhos de pão frito e fazendo-o acompanhar por um Esporão Private Selection 2013, numa harmonização feita com André Figuinha, o escanção do Feitoria.

A gelatina do jus de vitela (uma redução feita com várias partes do animal e que demora três dias a ficar no ponto certo) faz colar os lábios enquanto as folhas se desdobram em vários sabores, uns mais ácidos, outros mais florais, outros mais adstringentes.

Difícil, esta aposta? Sim, diz, quando se põe um prato destes na carta de um restaurante sabe-se à partida que ninguém, ou praticamente ninguém, o vai pedir. Será a palavra tutano? Provavelmente. A ideia de comer medula óssea de animais não é apelativa para a maioria dos clientes que vai a um restaurante com uma estrela Michelin, como o Feitoria, e que procura (e encontra) a segurança de um carabineiro do Algarve ou de um robalo com lavagante.

Mas prova-se que é, sobretudo, um preconceito, quando o prato aparece integrado num menu de degustação e toda a gente gosta. “Há palavras que assustam”, diz João Rodrigues. “Tivemos aqui outro prato feito com sames de bacalhau ao qual chamávamos estufado com sames fumados e que era pouco pedido. Mudámos o nome para estufado de bacalhau e passou a ser muito mais pedido.”

Porquê então manter um nome como Folhas e Tutano? “Porque acredito que temos que ter um papel que ajude a desmistificar estas coisas. Não vale a pena as pessoas fecharem-se na máxima do ‘não gosto’ porque o mesmo produto cozinhado de maneiras diferentes tem resultados diferentes”, explica o chef. “E porque queremos partilhar a nossa visão sobre o que comemos e mostrar que coisas que são consideradas descartáveis ou caíram em desuso são, às vezes, as que estão mais cheias de sabor.”

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