Abrir um restaurante com 22 anos era uma aventura.
Eram outros tempos.
Tinha vindo para Lisboa para estudar?
Não, sou transmontano e vim com cinco anos, com a minha família, para a Costa. Entretanto, um irmão meu teve a oportunidade de abrir um restaurante, eu era estudante de Economia, estava no primeiro ano, era o pós-25 de Abril, tudo numa grande confusão, e desisti do curso porque queria trabalhar.
Que memória tem da festa de inauguração do Pap’Açorda?
Festa, festa [dá uma gargalhada]. Servimos comida, bebida, tudo à discrição. Eram uns 200, 300 convidados. E sobretudo as pessoas muito satisfeitas, muito alegres.
Ninguém achou estranho terem escolhido o Bairro Alto para instalar o restaurante?
Ninguém. E depois havia necessidade de um espaço, que ainda não existia em Lisboa, do tipo do Frágil, muito ligado à cultura, um ponto de encontro de um tipo de pessoas que tinham sede de ter uma movida como já havia em Madrid e noutras cidades. Atrás de nós seguiram-se outros bares, outros restaurantes.
A grande euforia corresponde à década de 80.
Sim, nos anos 90 a coisa esmoreceu porque abriu a Avenida 24 de Julho, mas tornou a subir e depois começaram a aparecer coisas por toda a cidade.
Como é que aconteceu essa mudança do Bairro Alto?
Foi muito natural. As pessoas estavam muito felizes, saíam de casa para ir jantar e ir a um bar. Tivemos sempre um olhar atento ao que as pessoas necessitavam e também o que nos apetecia fazer, o que víamos lá fora.
Começaram a ter uma série de clientes famosos, actores, realizadores.
Começou a haver, sobretudo da parte da imprensa francesa, uma curiosidade sobre Lisboa e começámos a ser falados. Também porque não havia muita coisa.
Entre as pessoas que frequentavam o Bairro Alto toda a gente se conhecia, havia um ambiente muito familiar. Isso foi-se perdendo?
Foi, também com a mudança do mundo. Na altura não se sentia globalização nenhuma. Eu comecei a senti-la a partir de finais dos anos 90. Na gastronomia, por exemplo, com a ascensão dos chefs.
Não se falava em chefs nos anos 80.
De todo. Eu fui, com a Bica do Sapato, um bocadinho um precursor disso. Quando abri a Bica, dei a conhecer o chef. Foi nessa altura que os chefs passaram a ter mais importância. E começou a sentir-se a globalização. Comecei a ver os restaurantes, ia-se lá fora e comia-se os mesmos pratos que se comia aqui. Isso veio massificar um bocadinho.
Tem alguma nostalgia desses primeiros tempos no Bairro Alto? De 1981?
Nenhuma. Não tenho nostalgia de nada. Vejo em frente, não olho para trás. Foi um tempo espectacular, estrondoso, ainda bem que passei por ele, que usufruí dessa época. Foi o despertar de muita coisa, de partilha, e sobretudo para mim foi o conhecer gente muito especial que tive o privilégio de servir e de conversar.
Tinham clientes como Robert de Niro, Catherine Deneuve, John Malkovich, Sean Connery. O que andavam todos a fazer por Lisboa?
Alguns vinham filmar. Na altura Lisboa era uma cidade boa e barata para se fazer filmes. O Sean Connery veio fazer o Outubro Vermelho. E perguntavam: para sair à noite, onde é que se vai? Pap’Açorda, Frágil. Acabava tudo naquele circuito.
Depois começa a aumentar o número de bares e há muita gente a dizer ‘o Bairro Alto é só miúdos’. Como é que vocês, estando lá dentro, viram isso?
O Bairro Alto já teve dezenas de fases, cada década era uma fase e vinha uma tribo diferente. Mas ultimamente comecei a sentir-me uma ilha ali no meio. Para mim, a pior fase foi quando todos os bares começaram a abrir as portas para a rua. Aí deu azo a algum perigo, toda a gente andava com o copo na mão, coisa que não era permitida nos anos 80, em que as casas tinham que ter porta fechada. No momento em que transbordou para fora foi a grande confusão.
A faixa etária baixou?
Sim e começou a sentir-se mais a falta de respeito, de educação, o álcool a subir e a fazer alguns estragos. Mas com certeza que o Bairro Alto vai mudar novamente um dia destes.
E no meio de todas essas mudanças, continua a ter uma identidade que não perde?
Acho que sim, tem uma personalidade muito forte. E auto-renova-se.
Mas decidiram que era chegado o momento de sair. Porquê?
Tivemos o convite da Time Out para irmos para o Mercado da Ribeira. No bairro, as coisas para mim estão niveladas um bocadinho por baixo. Não tenho nada contra. Se há clientes é porque as pessoas têm necessidade de sítios desses. Eu é que senti que já não tinha nada a ver.
1998, a Bica, o Lux e o Tejo
Quando vêm para aqui [Santa Apolónia], acaba por ser um pouco a mesma lógica que se repete: depois do Pap’Açorda e do Frágil, a Bica do Sapato e o Lux.
Exactamente. Aqui também não havia nada ou muito pouca coisa. Daí que pensámos em ficar com tudo [a fileira de armazéns, que inclui a discoteca, o restaurante e outros espaços explorados por outros proprietários] para podermos fazer um pólo de vários interesses, e para que as pessoas pudessem vir aqui e não só ao restaurante.
Quando é que começaram a pensar nisso?
As primeiras conversas com a Associação do Porto de Lisboa foram em 1992, a pensar no Jardim do Tabaco, que depois não avançou. Em 94 voltámos a negociações, o Lux abriu em 98 e a Bica em 99, já na altura da Expo. O Lux abriu no dia de encerramento da Expo. Acreditámos nessa altura — não acredito mais — que Lisboa se ia expandir. Havia sinais de que toda a parte oriental iria ser mais uma parte integrante da cidade. Não se viu isso. Há a Expo, tudo bem, mas há um vazio até lá. Nada aconteceu. Nós acreditávamos que no Caminho do Oriente fosse crescer.
Agora diz-se que Marvila está a mexer.
Eu estou a ver mais Cais do Sodré, Campo das Cebolas. Lisboa funciona muito assim: agora é o Intendente, vamos todos para o Intendente, depois é o Cais do Sodré, vamos todos para lá. Não há um sentido global da cidade. Nós tentámos que nos dois sítios para onde fomos marcássemos alguma coisa na cidade. A nossa forma de trabalhar foi sempre um bocadinho a pensar nos lisboetas, não no turismo. Seria muito mais fácil ter feito um sucesso no Bairro Alto, passar o restaurante e ir abrir outro. Não, mantive-o lá, abri este, que já tem 17 anos, gosto de fundar, de criar raízes num sítio e para isso temos que pensar também à nossa volta.
2015 e o Mercado da Ribeira
Agora vão chegar a uma zona onde não serão pioneiros.
Aí já não. Cansei-me de ser pioneiro [dá uma gargalhada]. Apesar de a nossa proposta ser diferente das que existem lá.
E como olha para a zona da Ribeira neste momento?
Como uma zona viva. O Bairro Alto também está vivo, evidentemente, mas é outra forma de estar.
Para além da localização, vai haver mudanças no Pap’Açorda?
Não. Na essência continua a mesma coisa. É aquilo que sabemos fazer e o que queremos continuar a fazer.
Hoje os chefs estão sempre sob grande pressão para criar coisas novas.
Não vejo que haja necessidade disso. Não me parece preciso estar sempre a criar coisas novas. Se o arroz de cabidela se faz assim, não há que estar a inventar. O meu caminho vai ser sempre esse e é isso que faz com que vinquemos a nossa personalidade de portugueses. E agora com tanto turismo é preciso mostrar a cozinha portuguesa na sua essência.
Como vai ser o espaço?
Vai ter duas salas, dois bares grandes, era uma parte do primeiro andar do mercado, que dá para o jardim, e que foi reestruturado pelos arquitectos Aires Mateus. É um restaurante que vai estar aberto do meio-dia à meia-noite durante a semana e aos fins-de-semana até às duas.
Custou-lhe desmontar o Pap’Açorda no Bairro Alto?
Não. Claro que guardo histórias, guardo memórias que foram muito boas. Mas já está.
Fica-se a pensar ‘o que estas paredes poderiam contar’…
E podem. Se pudessem contariam, com certeza. Pode parecer frio, mas não é. Foram três décadas e meia, foi muito importante, super importante para mim. Agora há que dar lugar a outro e eu tenho que seguir o meu caminho. E o caminho é em frente.