Estávamos no início dos anos de 1980. O Bairro Alto, em Lisboa, era ainda um lugar de tascas, tabernas e prostituição quando Fernando Fernandes, então um jovem de 22 anos, e o seu sócio, José Miranda, ali chegaram para abrir o Pap’Açorda. A festa de inauguração foi memorável. Um ano depois, Manuel Reis — que já ali tinha a Loja da Atalaia e que desafiara Fernando e José a virem para o bairro — abria o Frágil.
Entre estrelas de cinema, intelectuais, poetas, artistas plásticos, gente da moda e da música, a movida de Madrid estendia-se a Lisboa. O eixo Pap’Açorda-Frágil iria marcar a noite da cidade e a eufórica década de 1980 no Bairro Alto — num modelo que, no final dos anos 90, Fernando Fernandes e Manuel Reis tentaram replicar com a Bica do Sapato e o Lux, à beira-Tejo, junto a Santa Apolónia.
Trinta e cinco anos depois, o Pap’Açorda deixa agora o Bairro Alto para reabrir noutra zona entretanto renascida: a Ribeira. É o mesmo Pap’Açorda de sempre, com os históricos pastéis de massa tenra e a mousse de chocolate, garante Fernando Fernandes, só que agora no primeiro andar do Mercado da Ribeira. Em conversa com o restaurador, sentados a uma mesa da Bica do Sapato, percorremos estas três décadas e meia da história de alguns dos maiores ícones da noite de Lisboa.
Anos 1980, o Bairro Alto e o Frágil
Sente que o Pap’Açorda ajudou a mudar a cidade?
Tenho alguma dificuldade em dizer isto, mas julgo que fomos muito importantes para a cidade, sobretudo para o Bairro Alto. Apesar de ser um miúdo na altura, de sermos todos muito miúdos, tentámos dar uma abordagem diferente à gastronomia e ao que havia então, sobretudo na maneira de servir, de estar, de apresentar a cozinha tradicional.
Em 1981 não havia um restaurante médio, havia a tasca (e não tenho nada contra, até me inspirei muito nas tascas), e os restaurantes de luxo como o Gambrinus ou a Tágide, mas não havia muito um restaurante intermédio, que pudesse oferecer a descontracção de uma tasca mas com mais preocupação de qualidade.
Porque é que escolheram o Bairro Alto?
Foi por culpa do meu sócio, o Manuel Reis, que tinha já lá uma loja de antiguidades e gostava imenso do Bairro Alto. Eu tinha na altura um restaurante na Costa da Caparica e ele, que era cliente, resolveu picar-me dizendo que eu devia vir para Lisboa, que o Bairro Alto precisava de um restaurante assim.
Colocou-me o bichinho e fomos ver. Quando cheguei ao Pap’Açorda fiquei apaixonado, pelo pé direito, pelo ar que tinha, era uma casa de pasto, com barris, meio taberna. Eu e o meu sócio José Miranda começámos a tratar das coisas e com o dinheiro escasso que havia na altura tentámos fazer o melhor possível, com a ajuda do Manuel Reis, que foi muito importante sobretudo para a decoração, que foi uma grande surpresa. Era uma tasca com mármores e três lustres enormes maravilhosos, que faziam contraste com uns cortinados de plástico. Na parte estética acho que marcámos.
Como era o Bairro Alto nessa altura?
Era fado, prostituição e muito álcool. Havia muito bêbado, várias tabernas espalhadas, na Rua da Atalaia havia imensas, onde se ia tomar um copo de três.
Ainda não era um destino para jovens?
Nada, nada.
O Frágil aparece a seguir.
Um ano depois. Nós abrimos em Março de 1981 e o Frágil em Junho de 82.
Não tiveram medo que um restaurante com essas características não resultasse no Bairro Alto?
O bairro era muito pacífico. Tinha uma característica que ainda hoje tem: uma personalidade muito forte. Hoje está um bocadinho mais descaracterizado, mas na altura era uma coisa muito pacífica, os vizinhos davam-se bem, era um bairro quase familiar. Depois isso começou a desaparecer com a chegada de outros negócios, naturalmente as pessoas começaram a afastar-se, a prostituição começou a ir para outros sítios.
Esse Bairro Alto dos anos 80 nasce muito a partir do eixo Pap’Açorda/Frágil.
Acho que sim. O Pap’Açorda começou logo com uma grande inauguração, com a elite intelectual que existia na época. Funcionou o boca-a-boca, porque não havia publicidade. Alguns jornais começaram a falar, na altura também estavam todos localizados no bairro, A Capital, o Diário de Lisboa, estava tudo aí, os desportivos, A Bola, oRecord. Alguns começaram a fazer crítica e tornou-se um sucesso desde o primeiro dia. Acho que o que fez o sucesso foi precisamente a descontracção e a nova maneira de estar e uma preocupação de servir uma cozinha tradicional portuguesa com algum brio.
Fizeram um trabalho de recolha de receitas?
Tínhamos uma grande preocupação com isso e pesquisávamos. A mãe do meu sócio José Miranda tinha uma preocupação muito grande com a cozinha e uma compilação de receitas enorme e nós tentámos fazer algumas delas e seguir à risca coisas que às vezes não eram muito conhecidas. Eu também venho de uma família que também adorava comer. Começou tudo muito simples e foi crescendo, como eu também fui crescendo.