Assim que a primeira colher de gelado percorre a língua, um balão de banda desenhada dispara da cabeça com a imagem de uma vaca que pasta à velocidade açoriana. À segunda colher, a vaca ganha nome: Quieta. Foi ela que acelerou a história familiar do Grupo Barcelos, que deu origem à Quinta dos Açores, começada pelo pai, Francisco Barcelos, e prosseguida pelas filhas, Telma, Helga e Diana.
Quando, em 1977, o sogro de Francisco estava prestes a abandonar a criação de gado, este achou que ele merecia destino melhor. Ouviu falar de espécies holandesas e alemãs; fixou-se nas Holstein-Frísia, a raça malhada que se transformou num dos postais açorianos. Em pouco tempo, convenceu outros criadores a visitar a Alemanha. Foi “a primeira viagem de lavradores para fora” do arquipélago, recorda Helga, a filha do meio. No regresso, trouxeram 990 vacas e o início de uma “renovação genética na ilha”.
Mesmo assim, Francisco Barcelos não deixava de pensar no futuro do negócio. Foi criando novas empresas, ligadas à criação de gado e à produção de leite, e ofereceu uma bezerra a cada filha, qual cupido desejoso de que as três se apaixonassem para sempre pelo sector. À Quieta — que hoje figura em livros infantis lançados pelo grupo — as irmãs não resistiram. Em 2012, a família Barcelos abriu a Quinta dos Açores, transformando “a produção primária em produtos de valor acrescentado”, como gelados, queijos ou iogurtes, contextualiza Diana. Do Atlântico, os gelados que sabem a ilhas voaram para o continente português (ver “Onde encontrar”), puseram os pés em Espanha, preparam-se para chegar à China e fazem parte, até ao final deste mês, dos voos da TAP entre Lisboa e Porto.
Passando os olhos pelas cuvetes expostas no snack-bar da Quinta dos Açores (o único lugar, a par da gelataria de São Miguel, onde se podem provar os 30 sabores existentes), às portas de Angra do Heroísmo, os clássicos morango, baunilha e chocolate são ofuscados pelas inovações da tradição açoriana. São os gelados das queijadas Dona Amélia ou da Graciosa, de chocolate com Queijo da Ilha ou de nata com ananás dos Açores que queremos provar. “Nisso sinto que somos muito diferentes”, reforça Helga.
Vamos aos não-factos. O que é que este gelado tem? Provámo-lo à saída das máquinas, ainda antes da entrada no túnel de refrigeração, o que garante a cremosidade original da nata fresca. O que temos, no primeiro plano, é um regresso à infância, ao leite saído da vaca pela manhã, que deixa bigodes mesmo nos mais cuidadosos. É “comfort food”, enquadra Diana, referindo-se à expressão que começou a ser utilizada nos anos de 1960, nos Estados Unidos, para designar a comida associada ao sentimento de protecção da infância, como o bolo de iogurte da avó ou a canja de galinha da mãe.
Entretanto, às voltas na língua, vão brincando pedaços de queijada (da receita criada em 1901 para gracejar a rainha Dona Amélia na sua primeira visita à Terceira), que dão o que faltava de solidez e pés na terra ao gelado. E é fácil levar o balão de banda desenhada até à fábrica onde mãos com experiência, nesta mesma ilha verde, misturam açúcar com ovos, mel de cana, farinha e outros ingredientes secretos.