Fugas - restaurantes e bares

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O mar é o patrão, resta-nos obedecer

Por Francisca Gorjão Henriques

É uma iniciativa que pretende dar a conhecer espécies que nos são estranhas e ao mesmo tempo promover a sustentabilidade. Na segunda edição do Mar Adentro, em Portimão, houve chefs surpreendidos com aquilo que temos mesmo ao nosso lado.

Judeu, serrajão, taralhão, pé-de-burro. É bem provável que o leitor não saiba do que estamos a falar. São espécies que existem na nossa costa, mas raramente entram nas cozinhas. Talvez isso esteja prestes a mudar.

Pelo menos é o que pretende a iniciativa Mar Adentro, organizada pelo segundo ano pela Amuse Bouche em parceria com o restaurante Vista, do Bela Vista Hotel & Spa, na praia da Rocha (Portimão). A ideia é conhecermos melhor o que temos à mão e com isso promover a sustentabilidade.

Que fiquem de fora as vieiras, os lavagantes e o caviar. Há peixes, crustáceos e bivalves portugueses em cima de uma mesa corrida na esplanada a dar para o mar. Os animais estão todos por cozinhar e parece que acabaram de sair da água. Pedro Bastos, da Nutrifresco, é quem fornece a matéria-prima e dá as explicações que antecedem o jantar do dia 14 de Outubro (voltou a repetir-se, com outras espécies, no dia 15). Por exemplo, o pé-de-burro: “Em Itália chamam-lhe trufa do mar”, e isso diz tudo sobre a forma como é visto num e noutro país. É um bivalve, semelhante ao berbigão, cheio de sabor.

A João Oliveira, o chef anfitrião, juntaram-se Alexandre Silva (Loco), Rui Silvestre (Bon Bon, com uma estrela Michelin), João Rodrigues (Feitoria, uma estrela Michelin) e Arnaldo Azevedo (Palco); no dia seguinte vieram Miguel Rocha Vieira (Fortaleza do Guincho, uma estrela Michelin), Leonel Pereira (São Gabriel, uma estrela Michelin) e Carlos Fernandes (chef de pastelaria do Loco). Todos foram convidados a criar um prato a partir daquilo que o mar lhes ofereceu apenas umas horas antes. João Oliveira abriu a maré com taralhão, trompetas da morte, microvegetais e caldo de caril verde e maçã.

E já que voltamos a falar de taralhão convém explicar: é um molusco bivalve que tem de ser capturado durante a maré baixa porque vive enterrado na areia e no lodo, a 50 centímetros de profundidade. Tem uma concha elíptica e um tubo (semelhante à navalheira) que chega a atingir 20 centímetros para ir buscar água, continua Pedro Bastos. Os pescadores usam-no para isco, mas também o colocam nas feijoadas caseiras. Talvez não saibam que nos Estados Unidos e no Canadá é vendido a 300 euros o quilo. “Se começarmos a consumi-lo estamos a criar sustentabilidade”, adianta. Faz sentido substituir a vieira [que não existe em Portugal] pelo taralhão.”

Estes bivalves que temos diante dos olhos vieram da ria de Alvor (também há na ria Formosa) e foram apanhados às cinco da manhã. Se não os tivessem encontrado, talvez hoje continuássemos sem os conhecer. Mas com esta iniciativa tiveram direito a post no Facebook e Instagram, e graças a isso, numa questão de apenas algumas horas, o responsável da Nutrifresco recebeu vários emails de chefs a pedir taralhão para os seus restaurantes, contará João Oliveira mais tarde.

Também vale a pena substituir o atum pelo serrajão e o judeu, dois “pequenos tunídeos com carne mais suculenta do que o grande” rabilho, e que se passeiam pelas águas algarvias em Agosto e Outubro. “Será uma forma de diminuir a captura do atum”, aconselha Pedro Bastos.

Entre as outras espécies que por estas alturas nos garantem um consumo sustentável estão o salmonete (Alexandre Silva preparou-o com caldo de tomate e couve) e a pescada (no prato de Rui Silvestre veio acompanhada de mexilhão e funcho). Os portugueses “não têm bacalhau, mas têm o gene do bacalhau, e subvalorizam a pescada. É possível fazer alta gastronomia com a pescada”, afirma. Na sua mesa há ainda lula (que foi usada por João Rodrigues, com mão de buda, um citrino que parece ter dedos compridos, e caldo de sargaço), encharéu e cavacos (usados por Arnaldo Azevedo, com aipo fumado e chlorella, uma micro-alga verde forte).

“O que se passou ao jantar é o que faço durante o ano: pegar em produtos menos conhecidos e introduzi-los no menu”, diz o chef do Vista. “Todos os dias falo com o Pedro [Bastos], vamos apanhar coisas juntos, percebes, amêijoas. Ele mostra tudo o que faz e como faz.”

O que vem à rede

Como dizem os pescadores, “o mar é patrão”. Se tivesse trazido outros peixes, seria outro o menu do almoço preparado junto à ria de Alvor por Manuel Maldonado. O chef da Ostraria levou o jogo ainda mais longe e apanhou espinafres selvagens que crescem à beira da ria (e por isso são salgados) e folhas das figueiras próximas para cristalizar e acrescentar à tarte de amêndoa e alfarroba que serviu à sobremesa (a estação dos figos já terminou e esta era a forma de os trazer para o prato).

Pouco depois das dez da manhã ainda parece possível calçar umas galochas e atravessar a ria até ao outro lado. Mas a maré está a subir e em pouco tempo os bancos de areia e salicórnia ficam cobertos de água. As pessoas que apanhavam ostras desapareceram. Manuel Maldonado praticamente não larga os assadores. Nesta refeição não entra electricidade, só brasas alimentadas com lenha.

Os bivalves — taralhão, amêijoa, mexilhão, navalheiras, ostras — foram apanhados mesmo aqui, nos campos da Ostra Select, de Rui Ferreir. Serão comidos só com limão, alguns abertos na grelha. Depois vêm as alhetas (a parte que tapa as guelras) que sobraram dos salmonetes do jantar da véspera, colocadas numa espetada de pauzinhos de oliveira, com molho de fígados. Parecem pequenas asas, ou flores exóticas. Os fígados dos peixes apanhados para o almoço (pargo e o peixe galo) foram fumados até atingirem 70 graus e envolvidos em ovas para uma terrina, servida nas tais folhas de espinafres. Segue-se o peixe, com funcho e alho francês também assados, temperados com coentros, endro e estragão (o ponto de sal é dado por alcaparras com o fruto do funcho do mar fermentado durante um mês, explica Maldonado). Os carnívoros também têm o seu momento, com um género de sanduíche inspirado nas arepas venezuelanas: por dentro do pão de milho, tradicional da ilha do Pico, estão fatias da perna de javali caçado na serra de Monchique, que às sete da manhã foi para o espeto, onde ficou para além das duas da tarde. Veio acompanhada por um tártaro de ostra, salada de agrião, chalotas e puré de aipo com tutano fumado.

“Todo o marisco foi apanhado ontem por nós”, diz Maldonado. Também vai ensaiar umas anémonas que encontrou e marinou em vinagre — mas são poucas e não chegaremos a dar por elas ao almoço. A pimenta rosa usada no javali também foi apanhada por si. Gosta de cozinhar assim, ao ar livre. “Parece que estou a cozinhar para amigos.”

Ainda antes do alvoroço do almoço, o chef João Rodrigues comenta com a Fugas que isto não é bem um evento, é sobretudo “um encontro”. “Estamos a partilhar, mas acima de tudo a juntarmo-nos por uma ideia: a sustentabilidade. [Obriga-nos] a olhar para produtos que nos restaurantes estão postos de parte e outros que eu nem conhecia — só agora ouvi falar do taralhão. É importante saber que este produto está disponível.” Por isso, não será de estranhar se brevemente ele entrar na carta do Feitoria. “Dos pés-de-burro já tinha ouvido falar mas nunca tinha usado. São tesouros.”

Mesmo com as visitas, as rolas do mar vêm em bando ou isoladas buscar alimento. Um corvo marinho instala-se a poucos metros, indiferente. Talvez saiba melhor que nós o que a ria ainda tem para nos dar.

A Fugas esteve no Algarve a convite do Mar Adentro

 

 

 

 

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