Têm sido dias “completamente loucos”. Por vezes, ainda dão por eles a pensar como terá sido possível. Em Dezembro do ano passado, quando o Adega abriu portas em São José, no estado da Califórnia, a conquista de uma estrela Michelin “nem sequer um sonho platónico era”. E quando o telefone tocou às 10h de 25 de Outubro para lhes dar a notícia “a reacção inicial foi de total descrédito”. “Um choque”, contam à Fugas.
“Achámos engraçado quando lemos há meses no Twitter que [os inspectores do guia Michelin] nos tinham visitado e que tinham gostado muito da comida e ficado impressionados com a lista de vinhos, mas como o Adega é um restaurante simples achámos que estava fora do radar do guia”, recordam. Não estava. E apesar do bairro mais português de São José, onde está localizado, “já não ser tão português como dantes”, este “retiro manteve viva a tradição local com os seus riffs lúdicos e contemporâneos dos clássicos da cozinha lusa”, descreve o guia Michelin.
Razões não faltam, no entanto, para o espanto inicial. Não é todos os dias que um restaurante aberto há menos de um ano por um casal de emigrantes com menos de 30 anos conquista uma estrela Michelin. Muito menos um restaurante localizado nos Estados Unidos com uma carta assente nos sabores típicos da gastronomia portuguesa, ainda muito subvalorizada e desconhecida lá fora. Inédito se recordarmos que esta é a primeira e única estrela alguma vez atribuída a um restaurante em São José, a terceira maior cidade do estado da Califórnia.
A distinção, uma das mais importantes no universo da gastronomia, marca ainda um outro feito. Aos 23 anos, Jéssica Carreira, chef de pastelaria do Adega e filha dos proprietários, é uma das mulheres mais jovens de sempre a subir ao palco das estrelas Michelin. “A organização ainda está a tentar confirmar se é mesmo a mais jovem”, conta o pai e dono do restaurante, Carlos Carreira. No dia 17 de Novembro, os galardões serão entregues numa cerimónia oficial em Nova Iorque. A família Adega já tem os voos reservados.
Transformar os pratos sem lhes destruir a essência
Na nova carta de Outono do Adega, em vigor desde 2 de Novembro, os pratos surgem uma vez mais escritos integralmente em português, seguidos de uma breve descrição em inglês. Afinal, como é que se traduz caldo verde ou tripas à moda do Porto sem desvirtuar ou perder o sentido? E como é que pratos tão tradicionais – e, no caso da iguaria portuense, até longe de agradarem a todo e qualquer palato luso – conquistam os clientes norte-americanos e, em particular, os inspectores do guia Michelin?
O segredo, acreditam, está antes de mais na diferenciação. “Estamos conscientes de que há milhares de restaurantes e alternativas, por isso tentamos oferecer uma experiência aos nossos clientes. Tratamos o mundo da restauração à semelhança do mundo do espectáculo”, começam por enumerar. A “preocupação com a qualidade dos produtos e a satisfação absoluta do cliente” são regras de ouro. Além disso, a comida chega à mesa com um cuidado especial no empratamento, o elevado número de empregados de mesa permite um serviço quase personalizado e a carta de vinhos inclui mais de 300 referências, todas portuguesas.
Na cozinha, a filosofia passa por “apostar na autenticidade da gastronomia portuguesa e transformá-la sem destruir a sua essência”. Algo que David Carreira, chef executivo do Adega, traz da experiência como sous chef no Assinatura, em Lisboa, então liderado por Henrique Mouro. “Na prática, são os pratos das nossas avós, mas mais cuidados. Têm os mesmos ingredientes e os mesmos sabores, mas são feitos com técnicas modernas e, por vezes, inovadoras”, explica o chef português de 29 anos, natural de Santarém.
O bacalhau com todos, por exemplo, inclui “todos os ingredientes tradicionais, mas é apresentado de forma diferente”. O grão chega ao prato em puré, a couve dá forma a um rolo onde vêm embrulhados os restantes legumes, o bacalhau é braseado e finalizado com molho de salsa, batata caseira e salsa frita. Já as tripas surgem numa base de feijoada, com puré de feijão branco, rolo de carne com crosta de morcela por cima e pedaços de dobrada frita e telhas de chouriço.
“Os nossos pratos são muito facilmente identificáveis como tradicionais. Não estamos a inventar nem a distorcer nada, apenas a embelezar”, defende David. Só as sobremesas de Jéssica é que, de vez em quando, fogem (muito) às receitas originais portuguesas. Caso do arroz doce, feito com leite de coco e moldado em pequenas bolas, que são fritas e servidas com molho de maracujá e sorvete de mojito. Ou o pudim Abade de Priscos, uma das novidades da carta de Outono, que é acompanhado por mousse de caramelo, telha de presunto ibérico e gelado de damascos secos.
Encontrar produtos frescos e de qualidade a milhares de quilómetros de distância das raízes portuguesas foi “difícil no início”, confessam. Tiveram de se adaptar e optar por diferentes origens. A sardinha vem do Pacífico, o bacalhau da Islândia, da Noruega ou da Suécia, o azeite de Portugal. Muitos ingredientes são biológicos e produzidos localmente.
Em Silicon Valley “as pessoas estão mais abertas a arriscar”
Jéssica Carreira nasceu e cresceu em São José, para onde os pais tinham emigrado em 1988. Depois de estudar na Cordon Bleu College of Culinary Arts, em Los Angeles, decidiu partir para Portugal. Queria aprender mais sobre os sabores e as receitas com que tinha crescido. Estagiou no Alma, de Henrique Sá Pessoa; foi depois para o DOP, de Rui Paula, no Porto, e regressou a Lisboa para trabalhar no Assinatura. Foi lá que conheceu David, que antes já tinha trabalhado três anos no Eleven, de Joachim Koerper, para onde Jéssica iria depois e, aos 20 anos, se tornaria chef de pastelaria, responsável por todo o menu de sobremesas do restaurante lisboeta com uma estrela Michelin.
A vontade de abrir um restaurante em nome próprio foi, contudo, ganhando força nos últimos anos – queriam criar e mostrar a interpretação deles do que era a gastronomia portuguesa. Ainda tentaram fazê-lo em Portugal mas as burocracias e a crise económica dificultavam o arranque do projecto. Foi então que surgiu a oportunidade de renovar um restaurante português na Califórnia, o Sousa’s, em funcionamento há 33 anos em Little Portugal, o bairro mais luso de São José.
Não hesitaram. Para Jéssica significava um regresso a casa, para David a primeira grande experiência fora de Portugal. Adquiriram o espaço, juntamente com os pais de Jéssica, mudaram-lhe a cara, o nome, a ementa. O número 1614 da Alum Rock Avenue é agora mais moderno e sofisticado, embora essencialmente português. Há um mural de azulejos azuis e brancos, voam andorinhas e couves de Bordalo Pinheiro nas paredes, as mesas são em madeira maciça e há antigos materiais de construção de barris a fazer a ligação entre a decoração e o nome, que se materializa igualmente na enorme estante de vinhos. “Os nossos fornecedores dizem que é a carta de vinhos portugueses mais vasta fora de Portugal”, orgulha-se Carlos Carreira, que durante quase duas décadas trabalhou no mercado de importação de vinhos.
A localização, junto a uma via rápida que transforma em minutos a distância de 20 quilómetros até Silicon Valley, também contribui em muito para o sucesso conquistado em menos de um ano, acreditam. O melting pot cultural que se junta entre os milhares de empresas tecnológicas e start-ups da região ajuda a que a criatividade faça “parte do tecido social” e que os potenciais clientes sejam “mais abertos a arriscar”.
“À semelhança de tantas outras coisas maravilhosas de Portugal, a gastronomia tem sido pouco promovida e divulgada” internacionalmente, defendem, mas em São José esse “total desconhecimento” da cozinha portuguesa é combatido pela vontade de “experimentar coisas diferentes”. O que resulta numa “clientela muito variada e divertida”, que junta norte-americanos, jovens emigrantes de todo o globo à procura da fortuna no El Dorado digital e ainda a comunidade portuguesa e de descendentes que continua a viver no bairro.
É em satisfazê-los que continua a focar-se David, depois de conquistada a estrela Michelin. “É muito gratificante e uma grande surpresa, mas também uma responsabilidade acrescida”, defende. "Não era algo que procurássemos e não é isso que me tira o sono. O que me tira o sono são as filas de clientes e a vontade de fazer um bom trabalho e deixá-los felizes.” Se é verdade que garantem nunca ter tido falta de clientes, agora o telefone não pára de acumular reservas para jantar. E até meados de Janeiro já não “há hipótese nenhuma de encaixar mais ninguém”.
Adega
1614 Alum Rock Ave. San José, CA
Tel.: +1 408 926 9075
Email: info@adegarest.com
www.adegarest.com
Horários: de quarta a domingo das 17h às 21h30