Têm que ser quase como da família. Os bois fazem parte do quotidiano dos seus proprietários — tratam-nos pelo nome, partilham a jornada de trabalho, estabelecem relações de confiança, quase intimidade. É assim ainda nas mais recônditas aldeias de Trás-os-Montes, por onde o basco Imanol Jaca há muito se embrenha à descoberta e identificação de gado velho para abate.
É um mundo em vias de extinção, que já quase só vislumbra nos contrafortes das montanhas da Galiza e Norte de Portugal, onde resiste um modo de vida assente em pequenas explorações agrícolas em regime de subsistência e autoconsumo. No mais, o crescimento das explorações lácteas há muito que quebrou esse ciclo de convivência entre o homem e os animais.
É nesses paraísos naturais que Jaca recolhe os animais que fornecem carnes de paladares e texturas únicas para alguns (poucos) restaurantes um pouco por todo o mundo. Um deles é o Vinum, nas Caves Graham’s, em Vila Nova de Gaia, que nos últimos tempos tem agendado umas jornadas especificamente dedicadas às carnes do boi velho de Trás-os-Montes. Durante todo o ano, há o “bife tártaro” e o “costeletão grelhado” de vaca velha de Trás-os-Montes.
“Quando promoves produtos gastronómicos não prostituídos, promoves a saúde e ao mesmo tempo fomentas a cultura local e a produção honesta. Comer bem e saudável não é um luxo. O que é luxo é comer mal, e ainda por cima ter que pagar.” Imanol Jaca não o diz abertamente, mas percebe-se rapidamente que não é um grande adepto da moda das carnes maturadas ou das carnes macias de animais criados especificamente com essa finalidade.
“Não há história romântica com a vaca massajada ou criada com carinhos” e também “a tendência moderna da alta gastronomia de longas maturações” não o convencem. “Os perfeccionistas falam em sabor a tabaco e outras coisas, mas a verdade é que a partir de um certo tempo as carnes começam a ganhar sabores que não são naturais. E isso é o início da putrefacção”, conclui.
Reconhece, no entanto que “há um debate que anda aí” e que “estamos num mundo onde se um chef não cria ou reinventa nada parece que não faz nada”. O seu mundo, e da sua empresa, a famosa Txogitxu, é do gado velho com uma vida de trabalho e alimentação natural à base de erva e cujas carnes descansam três a quatro semanas depois do abate. “Queremos sabores naturais e da história de vida do animal, e a melhor forma de os preservar é o repouso das carnes durante três semanas”, garante.
É o denominado processo dry age, com o amadurecimento das carnes em câmara de frio e com ventilação. A temperaturas entre um e três graus e a rondar os 70% de humidade. “O que se pretende é que os músculos do animal relaxem e as gorduras se envolvam com a carne. Dependendo do tamanho ou do tipo de gordura, o processo pode durar duas a quatro semanas. “Se assim não for, podemos correr o risco de ter carne podre em vez de envelhecida”, adverte aquele que é considerado como um dos maiores especialistas europeus em carne bovina.
Gordura brilhante e raiada
Foi um longo tempo de namoro e sedução até ao abate da vaca velha que forneceu as carnes para as IV Jornadas do Boi Velho de Trás-os-Montes do Vinum. E como foi feita a escolha? “A escolha faz-se onde há 100 animais, quando há apenas quatro não há escolha nenhuma”, esclarece Imanol Jaca, destacando que é necessário um longo contacto e conquistar alguma confiança até que os proprietários acedam em vender o animal.
“Há uma cultura em que o gado faz parte da família e as pessoas procuram garantir que quem o leva vai apreciar e valorizar a forma como o animal foi cuidado”, diz o basco que há mais de duas décadas percorre as recortadas leiras do Minho interior e Trás-os-Montes. A raça ou a origem dos animais não é o mais importante, “o que interessa é que tenham uma vida de trabalho, que pode chegar aos 20 anos, e uma alimentação natural à base de erva fresca”.
No caso das carnes do Vinum, bastava passar a mão pela gordura, brilhante, espessa e amarelada, e levá-la à boca: erva fresca e até um toque salino a denunciar que as brisas marinhas chegavam até aos pastos onde se alimentou o animal. A gordura raiada, a cor vermelho vivo e o tamanho das peças davam-lhe um ar absolutamente guloso e irresistível.
Importante é que todas estes sabores não sejam destruídos e para isso há que ter cuidado em intervir e manipular apenas o necessário. “O bom cozinheiro é aquele que respeita o produto e lhe toca o mínimo possível”, diz Iñaki Viñaspe, outro basco que é um dos responsáveis pelo Grupo Sargardi, que explora a cozinha do Vinum e mais um grupo de restaurantes em vários cantos do mundo fazendo gala da cultura gastronómica do “txuletón” à moda do País Basco.
O braseiro à moda tradicional é determinante, já que “os fornos acumulam gases da combustão que acabam por ir, naturalmente, para a carne”, esclarece Iñaki, acrescentando que o ideal é o carvão de azinho, “ou outras madeiras de aromas suaves”, que não interfiram com os aromas da carne. A peça deve ter um corte bem alto, mínimo de 4cm, e repousar uma horas à temperatura ambiente.
É preciso muito carvão (mesmo que só para uma peça de carne), esperar que se faça a primeira combustão e a chama desapareça. É o momento de maior potência do calor. Há que selar primeiro a carne de um lado e do outro para que todos os sucos naturais se concentrem no seu interior. Só então se coloca o sal, que deve ser grosso, marinho, que seca e faz com que a carne absorva apenas o que necessita.
O ponto ideal é quando se fundem as gorduras e os sucos da carne e aí não há regras ou medidas. A atenção e experiência do assador são fundamentais. A carne tem que ficar apenas tostada, nunca cozida, o interior de cor púrpura e com temperatura entre 60 e 70º.
No Vinum o costeletão chega à mesa cortado em tiras que apetece comer à mão. Misturam-se os aromas do calor e do campo, sabor a natureza, suculência e gordura macia e envolvente. O sabor das carnes descansadas do gado velho chega a ser emocionante.